A arquitectura do absurdo

Porquê premiar a incúria de um restrito grupo de engenheiros que passam a poder assinar projectos de Arquitectura?

Esta quinta-feira será votado na Comissão de Economia, Inovação e Obras Públicas um monumento ao absurdo, ao desprezo pela lei e pelos princípios que deverão reger uma sociedade moderna. Trata-se do Projecto de Lei 495/XIII, um diploma que prevê que alguns engenheiros civis possam assinar projectos de Arquitectura.

Esta casta de super-engenheiros é aquela que recusou adequar-se à Lei 31/2009, que define que a Arquitectura deve ser exercida por arquitectos, e que concedeu um período de oito anos para que os técnicos que pretendessem exercer Arquitectura pudessem tirar o respectivo curso que lhes daria a formação especializada exigida por lei.

Então porquê premiar o laxismo ou incúria deste restrito grupo de engenheiros com um regime de excepção e privilégio, em comparação com o número superior de técnicos que com grande esforço e sacrifício pessoal obtiveram um curso de Arquitectura para cumprir as exigências da lei?

As premissas, falsas e equívocas, são desmentidas e desmontadas pelo parecer do Dr. Freitas do Amaral que recentemente veio a público e que derruba, categoricamente, as interpretações que servem de frágeis pilares legais ao projecto de lei que agora vai a votos.

Então por que é que a Casa da Democracia está a correr o risco de atestar que em Portugal a meritocracia e o empenho valem menos do que a inércia intelectual, a influência política e a exploração de subterfúgios legais?

O que move a Assembleia da República a dar cobertura a um projecto de lei que, a ser aprovado, apenas representará uma cedência a lobbies, com um previsível sacrifício do território, da qualidade dos edifícios e dos espaços onde os portugueses — e quem nos visita — habitam, trabalham e convivem?

O que moveu, no passado mês de Julho, a direcção do grupo parlamentar de um partido a usar do direito potestativo e impor a disciplina de voto para apresentar, em forma de projecto de lei, um regime privilegiado para um grupo estrito de pessoas?

O que faz mover partidos, que têm na promoção da igualdade, educação e do primado do bem público traves mestras do seu discurso, a sustentarem a ideia que ganhos financeiros obtidos ao longo do tempo com uma actividade para a qual não se tem qualificação, e uma interpretação dúbia da lei, são argumentos para perpetuar um privilégio anacrónico e injustificado a um grupo de pessoas que, sem formação superior, serão habilitadas por lei a exercer Arquitectura?

O que move outros partidos a apresentarem propostas que apontam para a desregulação faseada da profissão ou, como no caso do engenheiro representante do grupo parlamentar unipessoal, a submeter um projecto de lei que, além de alargar o leque de técnicos sem formação específica a poderem exercer Arquitectura, sugere a retirada de outros actos próprios aos arquitectos?

O que poderá mover o partido do Governo a não sustentar em força a posição pública do primeiro-ministro, que recentemente afirmou que “só os arquitectos devem assinar projectos de Arquitectura”, salientando ainda que fica “sempre arrepiado” quando ouve que “se quer alterar novamente a legislação para retroceder relativamente a um dos maiores ganhos civilizacionais que o país teve nos últimos anos e que foi definitivamente consagrar que os projectos de Arquitectura são da competência exclusiva dos arquitectos”?

Por muito bondosos que sejam os motivos que explicam o sustento deste absurdo legislativo, a realidade é que, a ser aprovado, os deputados reforçarão a desconfiança dos cidadãos, pelos sinais errados dados à sociedade, e os portugueses serão testemunhas das consequências danosas infligidas no país.

Por todos estes motivos, a Secção Regional do Norte da Ordem dos Arquitectos considera que se impõe uma reflexão mais profunda, de todos os intervenientes, e uma pausa neste processo.

A construção de um país moderno com base na competência, no saber e no mérito não se compadece com este projecto de lei, que representa uma regressão histórica e uma agressão moral e legal ao edifício que todos os portugueses têm vindo a construir, em conjunto e em consenso, nos últimos 44 anos.

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