O sistema de governo europeu: “keep it simple”

Portugal e outros países devem bater-se por soluções institucionais que não contribuam para complicar ou armadilhar esta via de governo quase federal.

1. O Congresso do PSD – em especial, o discurso de domingo da nova liderança – falou inequivocamente para fora, para os cidadãos e os eleitores. Seja na dimensão estrutural do médio prazo, seja em alguns dos estrangulamentos e aflições de curto prazo, o PSD não hesitou em marcar a agenda nacional. Muitos desses temas têm passado por aqui, alguns outros hão-de passar certamente. Não faltarão oportunidades. Mas sexta-feira, 23 de Fevereiro, tem lugar uma importante reunião informal do Conselho Europeu, preparatória do Conselho de 22 e 23 de Março.

 

2. Aí serão discutidos, em primeira ronda, temas ligados à distribuição de lugares, ao direito eleitoral, à eventual formalização do “candidato a Presidente da Comissão” e à ideia das convenções europeias propostas por Macron. Haverá conversas preliminares sobre o futuro do quadro financeiro europeu e sobre o financiamento da União. É a esse propósito que merece a pena gastar umas linhas com a cimeira, essencialmente a respeito de ideias-força em matéria da estratégia política e institucional.

 

3. Tenho procurado defender uma visão constitucional de conjunto, que faça um enquadramento global e dê um horizonte institucional de referência. É isso a que, por entre escritos, discursos e intervenções avulsas, dei o título mais convencional possível: “sistema de governo europeu”. Almejando que o tema, que não é novo, possa ser tratado com a mesma singeleza com que se diz que o sistema americano é presidencial ou o britânico é parlamentar.

 

4. Desde o Tratado de Lisboa e da correlação de forças que a sua “realidade constitucional” revelou que não hesito em qualificar o sistema de governo europeu como um sistema semipresidencial. Curiosamente, o trapézio do Tratado de Roma foi muito inspirado na constituição alemã de 1949 – a Lei Fundamental de Bona –, daí que o órgão representativo dos Estados levasse o nome de Conselho (Rat) e a ponderação do voto não obedecesse à paridade que outros federalismos tão afincadamente instituíram. Já o poliedro saído do Tratado de Lisboa e largamente conformado pela indeclinável força da “realidade constitucional”, parece-se bem mais com a leitura gaullista da Constituição Francesa de 1958.

Ali encontramos, com efeito, um sistema com “chefia de estado” colegial – o “Conselho Europeu” –, em que têm assento os chefes de executivo de todos os Estados membros. Não tem poder legislativo, mas goza da prerrogativa de “indirizzo politico”, para usar a saborosa expressão italiana; tem portanto nas suas mãos aquilo que tradicionalmente levava o nome de função (de direcção) política. A Comissão, por sua vez, surgiu com um perfil mais técnico ou tecnocrático, em que, sem prejuízo da mesa colegial, os comissários tinham o estatuto e a competência unipessoal dos ministros alemães. Mas ambicionou sempre transformar-se num verdadeiro Governo, num órgão político, se possível com responsabilidade parlamentar, justamente para armar a sua legitimidade. A desenvolução de Lisboa atirou-a do perfil mais tecnocrático para o perfil de Governo, é certo, mas de um Governo à francesa. Um governo que tem o seu “quid” de emanação presidencial e em que o presidente da Comissão aparece demasiadas vezes nas vestes de um “super-graduado” e nobilitado chefe de gabinete do Conselho Europeu (mas não do seu presidente – que continua uma figura tíbia apagada, seja na versão Tusk, seja na versão Van Rompuy). A Comissão mantém, todavia, um poder notável: a exclusividade da iniciativa legislativa; verdadeiro poder de fogo numa comunidade democrática que, antes de o ser, era e é comunidade de direito.

Diante da esfera executiva, alicerçada nesta diarquia arquetipicamente semipresidencial, oferece-se o corpo legislativo, disposto em duas câmaras, como convém a uma entidade de assomos federais. De um lado, o complexo de câmaras que representa os Estados: o Conselho de Ministros nas suas várias formações (que vai dos assuntos gerais ao ECOFIN ou à justiça e assuntos internos). Do outro lado, o Parlamento Europeu em que estão representados os povos europeus e, potencialmente, tanto quanto seja figurável, o povo europeu – o “demos” e não o “demo”, claro está. A normalização da necessidade do consentimento destes dois corpos parlamentares contribuiu profundamente para “parlamentarizar” e até “federalizar” o regime. O Conselho de Ministros precisa ainda de uma grande reforma, transformando as suas “formações especializadas” numa espécie de comissões parlamentares (à porta fechada), mas tomando as deliberações num plenário dessas comissões que possa ser configurado como uma verdadeira câmara parlamentar.

A par disto, e corroborando a dita hipótese semipresidencial, alinha-se exactamente o processo de nomeação do Presidente da Comissão. É designado pela chefia de Estado – o Conselho Europeu –, mas tendo em conta os resultados eleitorais e depois de um processo de consultas (fórmula quase de certeza inspirada na constituição portuguesa, também ela de vezo semipresidencial). Mas o nome designado carece de uma votação no Parlamento e o colégio que vier a escolher (em regime de articulação com os governos nacionais a quem compete a indicação dos comissários) tem também de ser sufragado na câmara dos povos. Ou seja, é quase impossível escolher um Presidente da Comissão que não seja uma emanação parlamentar, o que dá todo o sentido à prática e à praxe dos partidos europeus centrarem as suas campanhas em prol de um candidato.

Explicadas as coisas assim e vistas desta guisa são já complexas que chegue, mas mantêm um nível aceitável de inteligibilidade e funcionalidade. É essa a razão pela qual Portugal e outros países devem bater-se por soluções institucionais – mesmo as mais comezinhas e particulares – que não contribuam para complicar ou armadilhar esta via de governo quase federal. Ao contrário do que muitos supõem, a batalha pela simplicidade é ainda a luta pela constituição.

 

 

SIM. Rui Rio. O discurso de encerramento do congresso foi uma forte mensagem programática para a sociedade civil e os eleitores, mostrando quão esgotada está a actual solução de Governo.

 

SIM. António Guterres. O doutoramento honoris causa da Universidade de Lisboa foi o reconhecimento de um percurso cívico, humano e político absolutamente singular.

 

 

 

 

 

 

           

 

 

 

 

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