À direita, a caça aos traidores

Esta guinada direitista é reveladora de como as direitas europeias e as das Américas vêm criando um ambiente ideológico e cultural que promove a caça aos traidores e que cava mais nitidamente a barricada.

Rui Rio vai chegar à liderança do PSD atravessando um campo minado. Desde que ganhou as primárias do PSD num dia que, para a direita publicada que o Observador tão organicamente representa, “pode ficar na história partidária: o dia em que o PSD deixou de competir com o PS e passou a concorrer com o PCP e o BE, como mais um pequeno lobby da governação socialista” (Rui Ramos, Observador, 16/1/2018), a parte mais vocal da direita portuguesa (essa trupe de comentadores neoconservadores que povoam os media a título de “liberais”) anda mais irritada com Rio do que seria expectável.

Na mesma direita que tradicionalmente gosta de louvar a “moderação” e a necessidade dos pétreos consensos europeístas, atlantistas e desreguladores, assiste-se a um verdadeiramente patético sobreaquecimento retórico que é revelador não apenas deste insuperado ressentimento pelo entendimento de mínimos que se conseguiu à esquerda para permitir o Governo de António Costa, mas sobretudo ainda dessa propaganda direitista dos primeiros meses da “geringonça”, muito anos 1930, que apresentava Passos Coelho como tendo sido fraudulentamente espoliado do poder. Miguel Albuquerque descreveu-o muito bem há dias quando dizia que Passos se comportou na oposição “como uma espécie de primeiro-ministro no exílio” (TSF, 14/2/2018), com aquele misto de pompa e de mágoa que carregava por aí. Que Passos se comportasse assim faz provavelmente parte da personagem. Mas surpreende que quem teria a obrigação de, pragmaticamente, apoiar o único esforço visível à direita (o de Rio) de minar a solidez do acordo que se fez à esquerda a sabote de forma tão caceteira. Bebe, aliás, na mesma fonte a irritação que uma parte da direita alimenta contra Marcelo e a sua “demasiada cumplicidade governamental”, que, “elogiando demais” o Governo Costa, continua a “abraçar continuamente o país inteiro”, dele “fazendo um orfanato” (M.ª João Avillez, Observador, 13/2/2018).

Para esta gente, Rio é pior. Ele é o “subscritor da eutanásia, defensor do aborto e de causas como a da legalização da prostituição”, como escreve Abel Matos Santos, do CDS, um homem que achava já, por exemplo, que as críticas às declarações homofóbicas de Gentil Martins são típicas de um “fascismo higiénico travestido de liberdade” (Observador, 18/1/2018 e 17/7/2017). Outros, como Rui Ramos, acham que face ao PS, nada menos que “o ‘Partido-Estado’ do regime, uma espécie de Frelimo ou de MPLA à portuguesa”, “teremos um PSD de ‘esquerda’, mas que de facto funcionará, dentro do regime socialista, como o lobby da ‘austeridade’”. Por estes lados acha-se que o “eleitorado de direita, mesmo quando se afirma à direita, está colonizado mentalmente pela esquerda”. O PSD é, por isso, um partido “cobarde”, com uma “identidade esquizofrénica que oscila entre os complexos de esquerda e o desejo passista e cavaquista de ser o faxineiro que põe ordem na festa socialista, enquanto os socialistas fazem um breve cochilo antes de voltarem ao poder” (Henrique Raposo, Expresso, 27/2/2017). E daqui se chega à extraordinária conclusão que “os partidos de direita em Portugal se demitiram da primeira das suas obrigações: cuidar politicamente do seu eleitorado defendendo os seus valores e interesses. (...) E esta é a diferença entre o eleitorado de esquerda e de direita em Portugal. Os primeiros são bem tratados pelos seus partidos. Os segundos são ignorados pelos que deveriam ser os seus partidos. Os primeiros nunca são abandonados. Os segundos são desvalorizados” (João Marques de Almeida, Observador, 14/1/2018).

É, portanto, isto ao que vem Rui Rio: trair o seu eleitorado. A campanha da direita que organiza a opinião de direita é a da pureza ideológica, do regresso à barricada mais sectária, abandonando a velha estratégia (e sábia, do ponto de vista da direita) de quem como o próprio José Manuel Fernandes [escreve]: “Durante muitos anos defendi convergências entre o PS e o PSD, defendi até o Bloco Central, em nome da necessidade de ter uma maior base de apoio para uma política reformista” (Observador, 15/1/2018). Esta guinada direitista é reveladora de como as direitas europeias e as das Américas vêm criando um ambiente ideológico e cultural que promove a caça aos traidores e que cava mais nitidamente a barricada. É isso que é mais revelador da campanha contra Rio.

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