Entre a História e as origens do romance ocidental

No novo livro de Alexandre Andrade a actualidade encontra-se com a Idade Média dos romances de cavalaria. O resultado é uma obra que, ao reflectir sobre si mesma, vai também beber à fonte que está na origem da própria ideia do romance.

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Alexandre Andrade: neste outro tempo em que se suspendem as amarras e em que apenas a fantasia e a ficção importam bruno lisita

No cruzamento que faz entre o tempo do discurso e a Idade Média, Descrição Guerreira e Amorosa da Cidade de Lisboa tem, pelo menos, dois antecedentes na literatura portuguesa. Em A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho (A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho e Outras Histórias, Porto Editora, 2013), Mário de Carvalho pusera já em confronto o século XII e a década de 1980 num encontro entre forças armadas desavindas no tempo e na intenção. Mas, sobretudo — porque mais próximo das opções estilísticas e processuais de Alexandre Andrade —, João Miguel Fernandes Jorge deixou em “Boorz de Gaunes e a Rainha Ginevra no Castelo de Palmela (Uma Paixão Inocente, Cotovia, 1989; Pickpocket, Cinemateca — Museu do Cinema, 2009) e ainda em Diário de Lançarot do Lago pelos dias de Agosto do Ano de 2008 (Pickpocket) um modelo próximo desta imaginativa fusão entre uma Idade Média idealizada e um tempo actual que se vê trespassado na sua coerência pela introdução de seres, gestos, acções e vozes vindos de um passado fabuloso. Cristalizado na noção mítica de uma medievalidade cavaleiresca, esse tempo é, ele próprio, uma ficção, por corresponder a limites cronológicos que estão para lá do estritamente histórico, assentando antes na reinvenção dos nexos temporais e dos lugares da efabulação. Alexandre Andrade está muito mais próximo de uma prática como a de JMFJ, porque, no seu romance, aqueles que demandam o Graal chegam ao presente da narração sem que nada explique ou contextualize essa incursão, sem que nada faça suspender a crença nesta verdade alternativa. Neste outro tempo em que se suspendem as amarras e em que apenas a fantasia e a ficção importam.

A forma como Alexandre Andrade entretece estes elementos desavindos, cronogramas paradoxais, seres em contradição com a plausibilidade, lembra as palavras de Aristóteles: “mais vale o impossível convincente do que o possível que não convence” e “Deve preferir-se o impossível verosímil ao possível inverosímil” (Poética, trad. Ana Maria Valente, F. C. Gulbenkian, 2011). Porque a inverosimilhança da trama, em Descrição Guerreira, a disparidade da sua lógica, são, curiosamente, aspectos que se vão esbatendo, até serem menos que vaga memória. Não embaraçam o avanço do romance, nem lhe são óbice. Talvez porque a narração não tente nunca clarificar a anomalia (como acontecia, em registo irónico e humorístico, no conto de Mário de Carvalho, com um lapso de Clio), este romance não vê baldados os seus esforços de equilíbrio de forças contrárias, nem se deixa invadir por brechas que comprometessem a sua estrutura, ou pudessem enfraquecê-lo sem conserto possível. Para a resistência dessa edificação não deixará, igualmente, de contribuir um factor que é comum a trabalhos prévios de Alexandre Andrade. O rigor da linguagem, como instrumento de precisão e investimento estilístico, a impecável urdidura dos segmentos, a montagem superior do todo. Sem ceder à tentação “preciosista” que poderia ter levado o estilo a suplantar o homem (parafraseando a máxima de Buffon), Descrição Guerreira conta com essa solidez de construção para que todos os elementos disruptivos — cavaleiros em demanda pelo Graal a dormirem em pensões lisboetas, a rainha Genevra (forma como se escrevia na Demanda do Santo Graal) em apuros pela cidade — sejam concorrentes, e não adversários, do conseguimento da ficção. Assim, cada um dos capítulos (não numerados) é construído segundo o mesmo esquema organizativo, em três fases. Uma primeira sequência apresenta o espaço que fornece o enquadramento e a abertura para o primeiro nível narrativo: uma esplanada e a envolvência natural e artificial ao seu redor. Segue-se, invariavelmente, um momento dialogado em que dois funcionários trocam impressões sobre o trabalho, as suas vivências, os desgostos amorosos de um dele, mas, sobretudo, preparam-se para atender dois clientes que fazem sempre o mesmo pedido e que centralizam o terceiro e último núcleo. A estes últimos, cabe-lhes ser o pólo em torno do qual “o conto” acontece. Essas duas personagens, narradores reticentes, reflexivos, divagantes e inquisitivos, debatem o “conto”, que deixa, progressivamente, de ser apenas objecto das suas conversas para passar a ocupar o mesmo plano das personagens — isto é, deixa de ser uma história que lhes é “externa” para ser um conjunto de acontecimentos a decorrer algures em local próximo. A matéria do “conto” constitui o centro temático de Descrição Guerreira: a demanda do Graal. Desde o início, o romance de Alexandre Andrade segue mais ou menos de perto o espírito e a letra do “conto”, isto é, adopta mesmo artifícios que nele se patenteiam, como a lista dos cavaleiros (neste caso, os que transitam do “conto” para o romance), a relação de Lancelote e Genevra, ou certos lances de confronto entre paladinos. E desde o início, também, o paradoxo das várias ficções que confluem para o romance é assumido e explicitado — “A tua escolha de tempos verbais ilude-me. Estás a dizer-me que isso já aconteceu?” (p.12)

É como se as realidades mutuamente se incluíssem — em vez de se anularem —, ao afirmarem-se. A narração pode começar, com pés solidamente assentes no solo citadino, em plena Rua do Monte Olivete — onde há certo prédio a cuja porta Lancelot vai bater —, para, escassos parágrafos volvidos, se centrar em Logres, onde se realiza um torneio ao qual o cavaleiro lamenta não poder acorrer por se encontrar prisioneiro. “Tudo se passa em Lisboa”, ler-se-á a dado ponto. “Estas aventuras de Lancelot, por exemplo, confinaram-se a uma faixa bastante estreita entre a doca de Alcântara e o Padrão dos Descobrimentos. Mas, a partir de agora, o cenário muda para uma zona que confina com a Lapa, a Rua da Escola Politécnica, os Restauradores e a Madragoa.” (p.37); “Se a cor local te agrada, posso até dizer-te que é pelas ruas do Bairro Alto, que desconhece por completo, que Perceval erra.” (p.49) Esse mesmo estado de coisas, que se encarrega de questionar a solidez de fronteiras e intervenientes, afirma-se, expandindo-se, no próprio curso do romance — “o cenário pode ser corriqueiro e mundano, mas a dor de uma ferida de lança é tão dilacerante aqui como numa qualquer floresta lendária, situada algures no cruzamento entre a História e as origens do romance em prosa ocidental” (p.52)

Descrição Guerreira nunca perderá de vista a literatura listada na “Bibliografia” que o encerra e que vai desde as obras atribuídas a Robert de Boron às de Chrétien de Troyes e mesmo à versão de Thomas Malory, passando pelos empreendimentos anónimos. De resto, o livro de Alexandre Andrade toma de empréstimo, algumas estratégias narrativas da tradição arturiana. Por exemplo, se na Demanda do Santo Graal há um capítulo intitulado “Mais ora leixa o conto de [fallar de Mellias] e torna a Gallaaz”, em Descrição Guerreira inúmeras vezes se lança mão da fórmula “aqui o conto…”, para operar mudanças da narração, ou no sentido de introduzir uma deslocação no espaço, ou na ordenação lógica dos acontecimentos descritos.

À medida que os vários enredos subsidiários se vão formando, e os seus caminhos se ramificam, o romance vai, gradualmente, assumindo a sua vocação reflexiva e “metaficcional” — “A personagem de Lancelot do Lago já foi apresentada na sua faceta de ‘Cavaleiro da Carroça’, privado de história e de antecedentes, integralmente subordinado à obrigação de salvar a rainha Guenièvre, objecto do seu amor.” (p.57) Percorre-o uma pulsão de estudar, de refazer o caminho que o faz regressar à origem da tradição da ficção em prosa. A “Matéria da Bretanha” é uma espécie de molde, de arquétipo, de que Descrição Guerreira se aproxima: de tal forma, em certos pontos, que a focagem o faz descer ao pormenor mais ínfimo — “recomenda-se a elucidativa introdução de Yves Bonnefoy à edição de bolso da Quête (Éditions du Seuil, colecção Points Sagesses, n.º Sa30).” (p.89) São momentos em que a factualidade se confunde com a ironia, e esta com a pretensão de informar e solidificar, explicitamente, um projecto de ficção que reflecte sobre si mesmo, repensando, ao mesmo tempo, a origem do seu próprio género — “Esta fase constitui um momento da história pessoal de Lancelot, mas também uma importante etapa na construção do ciclo das lendas arturianas e da passagem do verso para o romance em prosa em língua francesa.” (p.31)

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