O coro é quem mais ordena

A trilogia clássica do teatro grego Oresteia, em que aos homens é dada a faculdade de decidir sobre os homens, chega ao CCB pela mão de Tónan Quinto. Com um elenco que inclui os bailarinos Vera Mantero e Francisco Camacho e a música ao vivo dos Dead Combo.

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bruno simÃo

Primeiro, tinham sido as águas contaminadas da estância balnear a mover o doutor Stockmann a denunciar a principal fonte de receitas da cidade, descobrindo-se no centro de uma luta entre o indivíduo e o colectivo; depois, Ricardo III tinha engatado numa insaciável sede de poder, entregando-se a constantes maquinações com o fim de concentrar o poder apenas em si. Agora, depois de O Inimigo do Povo, de Ibsen, e Ricardo III, de Shakespeare, Tónan Quito avança para mais uma encenação em que a reivindicação do papel de cada um na sociedade é de novo atirado para o centro da arena.

Oresteia, a trilogia escrita por Ésquilo no século I a.C., foi a resposta de Tónan ao desafio, lançado por Luísa Taveira, para que apresentasse no Centro Cultural de Belém — de 17 a 24 de Fevereiro — um espectáculo que se pudesse integrar no ciclo De Zeus a Varoufakis, dedicado a percorrer as ideias e os valores da Grécia Antiga à actualidade. Para o actor e encenador, a ocasião acabou por se apresentar como perfeita para mergulhar nas três peças, “não pelo trabalho de arqueologia de fazer a trilogia completa”, mas porque no seguimento das suas encenações anteriores lhe permitia sujar ainda mais as mãos na matéria do destino e acercar-se deste “diálogo entre deuses e homens” ao abordar esta questão “de podermos transitar para outra coisa, ao mesmo tempo que somos responsáveis pelos nossos actos, individual e colectivamente”.

Algum contexto: a trilogia Oresteia é formada por três peças, mas cujo impacto provém da sua apresentação em sequência. Agamémnon dá conta do regresso da guerra de Tróia do herói grego com o mesmo nome e do seu assassínio pela mulher, Clitemnestra, em vingança por Agamémnon ter sacrificado a filha de ambos, Ifigénia, oferecida aos deuses em troca de vento para os seus barcos chegarem a Tróia; Coéforas centra-se num segundo momento de vingança, de Orestes, filho de Agamémnon, sobre Clitemnestra e o amante desta, Egisto, instigado pela morte do pai; no capítulo final, Euménides, a cadeia de vingança é interrompida pela deusa Atena, criadora de um tribunal em que Orestes será julgado pela morte da sua mãe e do amante. É sobretudo este momento de transformação que interessa a Tónan Quito. Quando Atena coloca o destino de Orestes nas mãos dos seus semelhantes, é a cidade que assume essa responsabilidade de decidir sobre os seus cidadãos — passam a ser os homens, e não os deuses, a julgar os homens. “Aqui assistimos a isso”, comenta. “Pessoas que não têm vontade própria seguem os oráculos dos deuses — Orestes mata a mãe com o apoio de Apolo, Agamémnon sacrifica a filha por vontade de Artemis. Interessava-me nesta história tudo o que é incontrolável e a forma como fazemos uso da nossa vontade para tomarmos decisões.”

A quebra do poder

Estas decisões, defende, não têm de ecoar apenas situações igualmente extremas — como assassínios dentro do núcleo familiar. Se na Grécia Antiga “as pessoas eram espectadoras de si próprias e quase iam ver as suas próprias acções, pensar sobre si e sobre a cidade, questionando o funcionamento da sociedade”, também esta Oresteia devia, hoje, convidar à reflexão sobre as decisões de cada um na sua própria casa e sobre o lugar que escolhe ocupar dentro da sua comunidade. Talvez seja uma leitura capaz de incidir sobre uma escala mais reduzida do que há dois anos, quando Tiago Rodrigues reescreveu a sua trilogia grega a partir de Sófocles, Ésquilo e Eurípides, e quando esta narrativa implicava uma inevitável leitura de povos (como o português e o grego) extirpados da sua vontade e a mando de troikas que impunham regras a partir do seu Olimpo. Agora, Tónan quer apontar às perguntas sobre que mão temos nos nossos destinos, em que circunstância gostaríamos que alguém o controlasse por nós e que implicações tem essa responsabilidade — uma vez que não delegar noutros as decisões implica uma consciência sobre cada acto e ter de assumir em pleno as consequências. E é a falta de controlo a ditar o andamento desabrido de Agamémnon, a primeira parte (de três) de um espectáculo que resulta numas económicas duas horas e meia — após cortes aplicados pelo bisturi de Miguel Castro Caldas — e que empurram esta Oresteia numa atracção pelo abismo, acentuada pela música ao vivo, tensa até ao osso, assegurada pelos Dead Combo.

Quando Tónan Quito pegou na nova versão da Oresteia que lhe foi enviada por Miguel Castro Caldas, não conseguiu desacelerar a leitura durante as primeiras 20 páginas. Cada página puxava a outra, as palavras vinham atreladas e quase sem dar tempo para respirar entre elas e o encenador cedo percebeu que se perdesse o embalo começava a tropeçar na complexidade da trama e das personagens. A única forma de não ser derrubado pelos labirintos erguidos por Ésquilo era passar por eles em passo apressado, entregue a uma energia que impunha uma sensação de vertigem. Em parte também, porque tudo acontece na linguagem que descreve acontecimentos trágicos que nunca têm expressão real nas cenas que se sucedem.

Foi a pensar em como alcançar essa energia, e sabendo que as palavras na tragédia não se prestam a caber em situações comportamentais, que Tónan chamou os Dead Combo para a música ao vivo e os bailarinos Vera Mantero e Francisco Camacho para o elenco — que inclui também Cláudia Gaiolas, Isabel Abreu, Miguel Borges e o próprio Tónan. “Os Dead Combo acabaram por ser preponderantes nas músicas que propuseram para a construção dessa vibração, influenciados por nós e influenciando-nos também, lançando-nos nesse lado catártico da própria tragédia”, diz Tónan.

“Estamos desde o início com eles a perceber o que o texto diz”, contam os Dead Combo. E é essa ligação entre actores, bailarinos e músicos que permite que a tensão nas palavras alastre à música e aos corpos. O momento mais evidente será aquele em que Vera Mantero surge na pele de Cassandra, aquela que profetiza o futuro e antecipa a morte de Agamémnon logo após a sua chegada. Os seus movimentos silenciosos são uma anunciação do mal que está para vir, um prenúncio do assassínio orquestrado por Clitemnestra e Egisto. “Ela está em transe, em alucinação, e adoro trabalhar sobre este estado de alucinada”, ri-se a bailarina e coreógrafa. Quando vemos Cassandra a avançar, sabemos que Tónan Quito está a usar o elenco para criar uma dinâmica em que todos pertencem ao coro e, por momentos, dele se ausentam para assumir personagens, peles que largam assim que possível para regressarem ao coro. “Para Ésquilo a personagem principal era o coro”, acredita o encenador. “É essa a nossa principal função como actores. Depois fazemos também as nossas personagens, mas só no colectivo nos revelamos enquanto indivíduos. O centro das peças é aquilo que o coro diz e como se posiciona em relação aos acontecimentos.” A evolução do coro é também significativa da transformação que Ésquilo imprime ao longo da tragédia. Se em Agamémnon essa voz colectiva ocupa ainda o lugar tradicional de apenas comentar a história, colocando-se de um lado quase de espectador, em Euménides o seu papel passa a ser interventivo. E essa é uma imagem que fica a martelar no fim de Oresteia: a de que o colectivo pode sempre decidir ser outra coisa. A de que a reivindicação de um destino passa sempre por deixar de reconhecer autoridade e poder aos deuses.

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