Portugal, um Estado no osso

O país já não tem a troika cá dentro, mas continua entroikado. No osso. Como se fosse um esqueleto.

Pode tirar-se a troika de um país, sem se tirar o país da troika? A pergunta vem ganhando pertinência na minha cabeça nos últimos dias. E a resposta também: sim. Portugal teve direito à sua “saída limpa” do chamado Programa de Assistência Económica e Financeira há quase quatro anos (mais do que aqueles que durou o ajustamento) e ainda há muita troika por aí. De norte a sul, dos hospitais às escolas, da justiça às funções de soberania.

As notícias comprovam-no. Ainda no último fim-de-semana, nas páginas deste mesmo jornal, a presidente do conselho de administração de Centro Hospitalar Lisboa Central dizia que a falta de médicos nas urgências “é ainda uma herança da crise”. Ana Escoval, nomeada para o cargo há um ano, acrescentava que os problemas não são exclusivos do Hospital de São José, respondendo assim às queixas dos médicos internistas daquele estabelecimento hospitalar lisboeta que já puseram por escrito, em duas cartas, a falta de condições das urgências em que trabalham.

O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, também já avisou que há “situações reportadas em vários hospitais, de norte a sul do país, relacionadas com as condições das urgências e de falta de pessoal médico”.

Em Faro, nas últimas semanas foram reagendadas várias cirurgias por “não se encontrarem reunidas as condições de segurança”. Na Madeira, no final de Janeiro, havia quase 30 pessoas à espera de cama para internamento, no Hospital Dr. Nélio Mendonça. Em Torres Vedras, o Centro Hospitalar do Oeste está sem médicos oncologistas há um mês. Em Leiria, segundo o Sindicato Independente dos Médicos, um doente com prioridade normal tem de esperar 1021 dias por uma consulta (por falta de recursos humanos, justifica-se o presidente do conselho de administração, Hélder Roque).

Na educação, o cenário repete-se. Há quinze dias, uma escola de Lisboa esteve encerrada parcialmente na sequência de um protesto dos trabalhadores não-docentes contra a falta de profissionais (serão apenas seis para 550 alunos entre os dez e os 16 anos). No início de Janeiro, em Viana do Castelo, caiu parte do telhado de um jardim-de-infância frequentado por 45 crianças. E há também uma praga de ratos numa das melhores escolas públicas do país, a Secundária do Restelo, que levou a associação de pais a pedir “compromissos de manutenção e limpeza do recinto escolar” e “planos concretos para uma requalificação de fundo nas infra-estruturas, permitindo as condições mínimas para um ensino público de qualidade”.

Noutra área nuclear do Estado, a da Justiça, os avisos também são permanentes. O último a falar foi o vice-procurador-geral da República, Adriano Cunha, que foi ao XI Congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (MP) dizer que "tem sido penoso gerir o MP ao longo deste mandato não só por causa da falta de estatuto mas também por aquela penúria nos meios, sobretudo humanos". Duas semanas antes, na abertura do Ano Judicial, o próprio Marcelo Rebelo de Sousa havia deixado um apelo: é preciso "dignificar e vitalizar a nossa Justiça".

E depois há o Estado que falha na protecção dos seus cidadãos, como lembrou o Presidente da República no seu discurso de Ano Novo, a propósito dos trágicos incêndios de 2017. E falha também na protecção das suas instalações, ou não se teria dado o roubo de material militar em Tancos, no último Verão. E falha ainda, é preciso não esquecer, quando uma mulher é assassinada pelo marido, 37 dias depois de se ter dirigido ao Ministério Público para apresentar a primeira queixa de violência doméstica.

Não estamos a falar de décadas nem de anos. Todas as situações acima descritas foram noticiadas nos últimos dias — ou meses, no caso dos incêndios ou de Tancos. Também não são fake news. São sick news (ficamos doentes só de nos lembrarmos delas). É este o estado do país que já não tem a troika cá dentro — tem até números muito positivos ao nível da taxa do desemprego ou do crescimento económico e malha cada vez mais apertada nos grandes casos de Justiça —, mas que continua entroikado. No osso. Como se fosse um esqueleto. 

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