Em Santa Cruz de Tenerife, as máscaras destapam todos os tabus e sacrilégios

Na capital de Tenerife, arquipélago das Canárias, o Carnaval teve honras de inauguração a 12 de Janeiro. Depois dos concursos oficiais, a folia dos disfarces invade o centro histórico e só terminará no domingo de Piñata. No segundo maior Carnaval do mundo, a folia são dez dias en la calle.

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Entre a avenida junto ao Atlântico e as principais ruas do centro de Santa Cruz de Tenerife cabem todas fantasias imagináveis. Médicos, polícias, pikachus, super-heróis para todos os poderes, astronautas, prisioneiros, piratas, diabos, anjos, ratos, gatas e animais de toda a espécie, reis, princesas, chineses, militares e, os mais populares, matrafonas e tutus coloridos a condizer com perucas e suspensórios. Há quem ponha apenas um pequeno adereço, mas a maioria veste-se a rigor, do sapato à maquilhagem. E há famílias inteiras vestidas de igual, todos com o tutu berrante a sobressair entre o maillot e as leggings pretas ou com tamanhos diferentes do mesmo pijama-macacão a imitar o pêlo de algum animal. Quase nos sentimos envergonhados por não termos uma mascarilha que seja. Mas é Carnaval — e também aqui ninguém leva a mal.

O Carnaval em Santa Cruz de Tenerife, capital da maior ilha das Canárias, teve honras de inauguração a 12 de Janeiro e só terminará a 18 de Fevereiro, quando o fogo-de-artifício encerrar o domingo de Piñata. É a única celebração popular do arquipélago classificada como Festa de Interesse Turístico Internacional, atribuída pelo governo espanhol em 1980. E é anunciada como o segundo maior Carnaval do mundo, a seguir ao do Rio de Janeiro; há muito com aspirações de ser declarada Património Imaterial pela UNESCO.

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Por estes dias, a festa ainda se faz sobretudo dentro de portas. Combinam-se os disfarces, ultimam-se os pormenores nos carros alegóricos. E no seio de cada colectividade desportiva ou cultural ensaiam-se músicas e coreografias. Este ano, o tema da festa é a fantasia. Desde 18 de Janeiro que no Centro Internacional de Feiras e Congressos da cidade se sucedem diferentes competições alusivas à quadra carnavalesca, algumas com transmissão televisiva assegurada a nível nacional e emitida um pouco por todo o mundo. Ninguém leva a mal — mas até que o Carnaval desague en la calle as tradições oficiais são levadas muito a sério.

A programação arrancou com o concurso de murgas infantis, com fases de apuramento distribuídas ao longo de três dias. Seguiu-se um festival coreográfico e a competição de murgas adultas — quatro dias até à final. Mais a noite dos agrupamentos musicais, a eleição da rainha infantil, a gala dedicada à terceira idade e o espectáculo d’A Canção do Riso, com a escolha das músicas mais divertidas. No sábado passado, competiram os grupos de comparsas e, no domingo, os melhores disfarces e rondallas. Até que dia 7 de Fevereiro subiu a palco a última e mais esperada competição: a rainha do Carnaval, encarregada de representar a ilha de Tenerife, e o Carnaval em particular, em feiras de turismo e outros eventos durante o próximo ano.

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Ao longo de três semanas, avalia-se em palco um ano inteiro de trabalho de mais de uma centena de colectividades locais, ao estilo dos clássicos concursos de variedades ou de beleza. É como se fosse uma antecâmara solene e tradicional para o deboche que se segue — dez dias de folia ininterrupta pelo centro da cidade. Nas noites de maior afluência, chegam a somar-se mais de 150 mil pessoas no rectângulo de bairro histórico entre as praças de Espanha e do Príncipe. O espectáculo desce à rua e o profano instala-se. Põem-se as máscaras, caem as formalidades, os credos, os tabus. Que comece a festa!

Lo mejor del Carnaval es bailar en la calle

Pomposa é a chegada do Carnaval às ruas quando, na sexta-feira, a Cabalgata Anunciadora sai da Avenida da Bélgica ao início da noite. No desfile de mais de quatro horas pelas principais artérias da cidade, participam todos os grupos carnavalescos saídos dos concursos das semanas anteriores, além de carros alegóricos privados e grupos de amigos ou famílias trajadas a rigor. Este sábado, serão os ritmos do Brasil e dos países das Caraíbas a fazer subir a temperatura, com o samba e as batucadas dos grupos de comparsas a invadir as ruas.

No ano passado, quando aterrámos em Tenerife, já o Carnaval de Santa Cruz caminhava para o clímax da festa. A noite de segunda-feira tem fama de ser uma das mais loucas, na terça o “cortejo apoteótico” marca o início das despedidas e, na quarta de cinzas, assistimos a uma tradição tão inesperada quanto sui generis: o enterro de uma sardinha com muitos objectos fálicos à mistura. Mas já lá vamos. Por agora, começamos a véspera de feriado local na feira popular, erguida ao longo da marginal, junto à Praça da Europa.

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O aparato de diversões não foge ao habitual. Mas entre a fila de touros mecânicos vemos um Jocker a tentar equilibrar-se. Mais à frente, um frade faz pontaria a uma torre de latas com uma pistola de plástico. E, na roda gigante, há mais miúdos mascarados; assim como nos carrinhos de choque ou na casa fantasma. Muitos graúdos aguardam pacientemente de cara pintada e disfarces coloridos. Dos avós aos bebés de colo, são poucas as pessoas que vemos sem adereço de Carnaval, num corrupio de famílias e grupos de jovens a caminho do centro da cidade. Numa das barraquinhas de comida, um pai de peruca e saia roxa interpela-nos. De repente, levanta a camisola e aparece um Nenuco a espreitar no peito. A gargalhada é geral.

Esta noite, os painéis luminosos sobre a avenida não alertam para o piso molhado ou para o excesso de velocidade dos automóveis. Pedem que se “disfrute del Carnaval con moderación”. No centro histórico, as ruas estão engalanadas para a festa: os sinos e as estrelas da iluminação de Natal deram lugar a fios de luzes e máscaras de teatro. Nem os caixotes do lixo escapam, pintalgados de óculos e bigode. “Recicla vidrio com Don Carnal y mantém limpio tu Carnaval”, lê-se no rodapé. Já estamos na Praça de Espanha e agora a música vem de todos os lados. As ruas fervilham de máscaras e tropelias num ambiente contagiante.

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Numa banca de cerveja, as colunas gritam um “Cómo tú te llamas, yo no sé”, para gáudio da rapaziada que canta e dança mesmo em frente. “Lo único que sé, es que quiero con usted / Quedarme contigo hasta el amanecer.” Subimos a rua e entramos em pleno bairro histórico, centro nevrálgico da festa. São raras as ruas sem animação, com música vinda de bares e barraquinhas. Mas os concertos dividem a maioria do público por três praças: Candelaria, Príncipe e Espanha. “Lo mejor del Carnaval es por la noche, a bailar en la calle”, defende Veronica, de 37 anos. Gosta particularmente dos concertos, dos carros alegóricos e do desfile de comparsas, enumera. Veio com a família desde Candelaria, localizada a cerca de 25 quilómetros a sul de Santa Cruz. Mas há quem viaje de outras ilhas das Canárias de propósito para o Carnaval.

É o caso de Selmo, Suley, Samuel e Lomas, de 18 e 19 anos, que vieram de Forteventura viver pela primeira vez o Carnaval da ilha vizinha. “Dizem que é o melhor do mundo.” A experiência estava a superar as expectativas. “Esperava menos pessoas”, confessa Selmo. “Nunca tinha visto tanta gente junta. É um ambiente brutal, gente muito amável”, contam, enquanto descansam num banco de jardim.

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Mais tarde, voltamos a encontrá-los num dos concertos. No palco instalado no fim da Praça de Espanha, a música electrónica dá ritmo à juventude, com muitas bebedeiras a esvaziar as garrafas de misturas feitas em casa. Noutro palco, a música latina atrai sobretudo famílias, casais e grupos de adultos. O rigor da máscara é igual. No Carnaval de 1987, a voz da cubana Celia Cruz atraiu ali mais de 250 mil espectadores — feito que ainda hoje mantém o recorde do Guinness para maior congregação de pessoas numa praça ao ar livre para assistir a um concerto.

Passa da 1h e continuam a chegar autocarros repletos de mascarados vindos de outras zonas de Tenerife. O calendário já assinala Terça de Carnaval e quando o sol nascer serão poucos os que terão de ir trabalhar. A festa ainda mal começou.

Nem a ditadura travou a festa apoteótica do povo

Embora se acredite que o Carnaval tenha chegado à ilha no século XVI, enquanto tradição cultural embarcada nas viagens às novas colónias espanholas da América do Sul, as primeiras referências históricas datam do século posterior, quando surgem registos das primeiras proibições. Ao longo do tempo, a festa pagã foi sendo alvo de sucessivas interdições por parte de reis, governos e autoridades eclesiásticas. Proibiram-se os bailes e as máscaras na via pública, assim como os disfarces que invertiam os géneros.

Durante a guerra civil espanhola e a ditadura de Franco, a repressão empurrou os festejos para a clandestinidade, organizando-se primeiro em casas particulares e, mais tarde, regressando às ruas com o nome eufemístico de Festas de Inverno. Somente em Santa Cruz de Tenerife e em Cádiz terá o franquismo fechado os olhos à celebração popular, que voltou a chamar-se Carnaval mal foi instaurada a democracia. Parte da história é agora contada na Casa do Carnaval, espaço museológico inaugurado em Junho do ano passado, após de mais de 30 anos de avanços e recuos.

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Depois de uma noite de folia inebriada pelas ruas, os festejos voltam a envergar os trajes mais aprumados para a Terça de Carnaval. Todos os participantes da Cabalgata Anunciadora desfilam uma vez mais, agora durante a tarde, num “cortejo apoteótico” ao longo da Avenida de Anaga. As margens do alcatrão apinham-se até perder de vista. Famílias, população mais velha, muitos turistas. Há quem tenha chegado de manhã cedo para guardar lugar nas cadeiras de plástico da primeira fila.

À nossa frente, nas únicas bancadas instaladas de propósito para a ocasião, sentam-se grupos de estrangeiros com a pele rosada do sol. São sobretudo holandeses, alemães, ingleses e escandinavos, de férias nos resorts do Sul da ilha. Durante a manhã, chegaram dezenas de guaguas (designação local para autocarros) vindas das zonas mais turísticas de Tenerife. O espectáculo é realizado sobretudo para os turistas e os lugares privilegiados na bancada vêm muitas vezes já incluídos no pacote de férias. Entre o sector profissional ligado à produção dos disfarces — costureiras, designers e lojas de tecidos e de acessórios — e o sector da restauração e do turismo, “estima-se que cada euro investido seja multiplicado por três como resultado das festas” do Carnaval, calcula o Turismo de Tenerife.

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Em plena avenida, a animação é ensurdecedora. Mal se ouvem os coros líricos das rondallas e tão-pouco se percebem as letras satíricas cantadas pelos grupos de murgas. Apenas as batucadas e o samba dos comparsas furam a festa. É que o que importa são mesmo os disfarces — avaliam-se os mais bonitos, os mais originais, os mais exuberantes, os mais divertidos. Entretanto, entre um grupo e outro, passa um T-rex mecânico e um Sherlock Holmes. Desfila toda a saga de Star Wars, altas patentes do exército com etiquetas a dizer “no a la guerra”, e tudo o que há de super-heróis, mas em versão Lego. E, claro, as rainhas e as damas-de-honor, infantis, adultas e de terceira idade. Passam em carros tão ornamentados e majestosos quanto os vestidos, que chegam a pesar 200 quilos, feitos exclusivamente de plumas, pedras coloridas, metal e plástico. Também há carros alegóricos privados a integrar a procissão carnavalesca, com enfeites genéricos, como um barco pirata ou um circo, mas sem sátira política à portuguesa.

Falos e viúvas no enterro profano da sardinha

O “Coso Apoteótico” dura toda a tarde e marca o fim oficial do Carnaval, embora os festejos se prolonguem até domingo. Do programa falta ainda cumprir o enterro da sardinha (dia 14), o festival de rondallas (15), o cortejo infantil e o festival dos vencedores (16), o Carnaval de dia, com concertos e animação a pensar nas famílias (17), e o espectáculo de pirotecnia a fechar a festa no domingo de Piñata (18). É como se todos os dias inventassem um novo motivo para adiar as despedidas da farra. No entanto, apesar dos diferentes eventos esticarem o Carnaval até ao fim-de-semana seguinte, a última grande festa popular percorre as ruas de Santa Cruz na quarta-feira à noite, naquela que é a celebração mais original a que assistimos: o cortejo fúnebre de uma sardinha gigante feita em papel machê.

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Ninguém nos soube explicar como surgiu a tradição do Enterro da Sardinha, mas é certo que, à nossa frente, desfila um enorme peixe colorido, de longas pestanas e lábios encarnados. Quando chegamos, há um problema com o atrelado que transporta o chicharro — a tradição da pesca deu aos habitantes de Santa Cruz a alcunha de chicharreros — e o peixe ali fica algum tempo, a boiar sobre a multidão. Porque é de um enterro que se trata — embora o desfecho seja a fogueira e não um cemitério à beira-mar plantado — a procissão veste-se a rigor. Esqueçam-se os palhaços, os heróis e os índios dos últimos dias. Esta noite, a população traja de negro, entre gritos de desespero pela morte do defunto. O clero do disfarce veio em peso. Há padres, freiras, frades, bispos e cardeais. Até o Papa. Um confessionário, velas, terços e livros sagrados.

Podia ser um cortejo religioso, mas logo se percebe que é do mais profano que podiam inventar. Afinal é Carnaval, ninguém leva a mal. Por isso, uma equipa do CSI anda atarefada a tentar descobrir os assassinos do Dom Carnaval, passam esqueletos e mortos pálidos de lápide sobre a cabeça. E centenas, centenas de viúvas. Homens com vestidos de folhos negros ou avermelhados, com renda sobre o rosto e meias de rede a subir pelas pernas peludas. Gritam, choram, fingem que desmaiam levantando as saias pelo chão. Sempre prontas a mostrar o decote generoso ou a cueca atrevida. No confessionário ambulante, vão-se afinal revelar os pecados mais escabrosos, os sacrilégios de uma paródia que subverte convenções e tabus.

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O cenário é surreal. E por todo o lado saltam objectos fálicos na multidão. Entre os aros dos óculos, ao pescoço ou na mão. Há o esqueleto no caixão e as chupetas. E quem traga muitos numa pasta, com um “falómetro” para medir comprimentos. A sátira saiu à rua, numa transgressão de gargalhadas irreprimíveis. E assim será toda a noite, até que a sardinha chegue junto da marginal, onde aguarda a fogueira que há-de expiar todos os excessos cometidos e marcar a entrada na Quaresma, tempo de refreio e reflexão religiosa.

Quando era mais novo, conta-nos às tantas o motorista que nos guiou por Tenerife, o Carnaval de Santa Cruz era muito “diferente”, levava “menos pessoas”. “Agora os jovens bebem muito”, lamenta Ramon. Mas a festa, essa, não era menos rija, recorda. “Começava no sábado e só voltava a casa na quarta-feira.” Depois de a sardinha se desfazer em cinzas e o fogo-de-artifício queimar os céus.

A Fugas viajou a convite do Turismo de Tenerife

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