Como o Correio da Manhã pode ajudar a aumentar a transparência

Ler o Correio da Manhã devia ser obrigatório em todos os departamentos de Estado. E devia ser lido como uma fonte de inspiração.

Reserve as quartas-feiras para ler a newsletter de Bárbara Reis sobre o outro lado do jornalismo e dos media.

No caso do inquérito disciplinar sobre o diplomata Luís Almeida Sampaio, actual embaixador de Portugal na NATO, percebe-se a tentação do Ministério dos Negócios Estrangeiros em manter tudo fechado a sete chaves. Mal leu a notícia aqui no PÚBLICO, uma leitora escreveu que, “com diplomatas deste calibre, mais vale recorrer a pára-quedistas tipo Sampaio da Nóvoa”.

Tomar o todo pelas partes é um clássico no qual tropeçamos todos os dias. Ainda esta semana, quando o meu colega Sérgio C. Andrade perguntou a Celeste Amaro, que chefia a Direcção Regional de Cultura do Centro, em Coimbra, sobre as circunstâncias em que Diogo Gaspar — arguido e acusado de roubar obras de arte e mobiliário do Museu da Presidência da República, no Palácio de Belém, em Lisboa — foi aceite por um ano para trabalhar na “sua” direcção-geral, deu esta resposta extraordinária: “Eu sei que ele é arguido, mas isso não me interessa nada — actualmente, metade dos portugueses são arguidos.” O pequeno exagero de Celeste Amaro, deputada pelo PSD entre 2009 e 2011, foi notado por Nuno Garoupa, que sabe alguma coisa sobre Justiça: “Estima-se que podem ser cerca de cem mil os arguidos, menos de 1% dos portugueses.”

Embora usada em lógicas opostas, a técnica é igual: tal como Diogo Gaspar é arguido mas isso não tem importância porque cinco milhões de portugueses são também arguidos (falso), o embaixador Almeida Sampaio foi punido num processo disciplinar por incumprimento dos seus deveres de funcionário público; logo, todos os diplomatas são suspeitos de acções impróprias (igualmente falso). Chama-se a isto exagerar para ampliar o efeito da afirmação. O resultado, claro, é que o argumento morre antes de chegar aonde quer que seja.

No MNE há 3500 funcionários, 350 dos quais são diplomatas. Como sempre na administração pública portuguesa, ninguém tem dados. Depois de saber que o ministro Augusto Santos Silva concordou com a pena proposta pela Inspecção-Geral Diplomática — 150 dias sem funções e sem salário para Almeida Sampaio, com pena suspensa — e que a seguir enviou uma grande parte da documentação recolhida pelos seus inspectores para o Ministério Público, por ter indícios que podem ser de natureza penal, quis saber quantas vezes isto aconteceu na história da democracia.

Os casos são raros. No MNE, muitos se lembram do rocambolesco caso do ministro plenipotenciário António Tânger, que, depois de vários incidentes e suspeitas em diferentes postos, do Canadá à Índia, sempre relacionados com uso de dinheiro público e má gestão, foi punido há cerca de dez anos num processo disciplinar interno depois de o ministério ter descoberto que, quando era embaixador em Vílnius, era a sua mulher quem fazia a contabilidade da embaixada, assumindo um inusitado papel de “funcionária-fantasma”. Tânger foi sancionado pelo MNE, que a seguir enviou o processo para o Ministério Público. Mais tarde, o diplomata foi acusado e acabou por ser absolvido em tribunal. Hoje, António Tânger é embaixador de Portugal em Doha, no Qatar. Também há memórias vivas de um caso antigo, do final dos anos 1970, que acabou com a prisão (e expulsão da carreira) do cônsul-geral de Frankfurt condenado por vender passaportes. No total, nos anos da democracia, terá havido apenas algumas dezenas de casos de processos disciplinares que fizeram o caminho do protegido Palácio das Necessidades para a Justiça, julgados como crime, envolvendo diplomatas e funcionários do MNE, que vão de jardineiros a técnicos superiores.

Por ser raro, era óbvio que o inquérito a Almeida Sampaio teria interesse mediático — já para não dizer interesse público. Os dois nem sempre coincidem, mas neste caso não havia dúvida. Há já algum tempo que faço perguntas sobre o inquérito. Já está terminado? Já há conclusão? A primeira notícia acabou por ser publicada pelo Correio da Manhã, mas poucas são as informações correctas. A Inspecção-Geral Diplomática não propôs duas sanções, mas apenas uma: a suspensão de funções por 150 dias. O relatório não propôs que se castigasse o embaixador obrigando-o a pagar cem mil euros. O que aconteceu é que colegas diplomatas sugeriram a Almeida Sampaio que devolvesse uma parte do dinheiro cujo mau uso era particularmente evidente e, há alguns meses — muito antes do desfecho da investigação —, o próprio embaixador ressarciu o Tribunal de Contas num valor que andará à volta dos 30 mil euros. O que significa que também não é verdade que, ao aplicar uma pena suspensa por dois anos, o ministro tenha feito com que o embaixador deixasse de ter “de devolver dinheiro” ao Estado. Na sua ânsia diária por “apanhar” os “poderosos”, o Correio da Manhã dedicou mais energia a castigar o ministro (“Ministro perdoa embaixador da NATO”) do que a revelar quais foram as acções que levaram à sua punição interna [já agora: comprar um carro acima do valor a que tinha direito, apesar de mais barato; usar verbas do Orçamento de Funcionamento de Posto (para a gestão corrente) em despesas que devem ser pagas pelo orçamento da representação, num misto de voluntarismo e irresponsabilidade]. E nessa pressa, passou por cima do facto mais impressionante: o ministro enviou para o Ministério Público caixas de documentos da contabilidade de Almeida Sampaio, descrita por várias fontes como “caótica”. É aí, no dinheiro recebido para patrocínios, que estão as suspeitas mais graves, que envolvem milhares de euros e que poderão acabar por colocar o embaixador perante um tribunal. Poder-se-á dizer que, perante os factos, o ministro fez apenas o que tinha de fazer. Não tinha outra hipótese. Mas no MNE também todos sabem dos casos antigos que foram arquivos e empurrados com a barriga.

Estou já a ver o que vão dizer os colegas do Correio da Manhã: estou a fazer um frete ao ministro e a repetir o seu Direito de Resposta publicado na edição de 7 de Fevereiro. Era bom que tudo fosse tão simples. Bom era que não fosse necessário telefonar a meio Portugal (menos ao ministro, cuja resposta negativa à pergunta “já há despacho sobre o inquérito?” era previsível) para tentar saber como tinha acabado o processo do embaixador Almeida Sampaio. Bom era que sobre alguns destes casos as brechas — ou laivos de transparência — não surgissem apenas perante a flagrante quantidade de erros com os quais o jornalismo tablóide convive bem.

Ler o Correio da Manhã devia por isso ser obrigatório em todos os departamentos de Estado. E devia ser lido como uma fonte de inspiração. Para evitar tantas notícias tão erradas, podem começar por ser mais transparentes e guardar apenas os verdadeiros segredos, não os casos incómodos das suas instituições.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários