Onde o fascismo está de boa saúde

Há na ciência política uma grande discussão sobre se se deve chamar “populista” ou “fascista” à extrema-direita radical europeia. O caso de Itália sugere-nos que estamos a chegar ao ponto em que tal distinção se tornará irrelevante.

Florença, Itália. — Uma jovem foi assassinada e esquartejada em Itália, na região das Marcas, não longe daqui. O principal suspeito deste crime horrendo é um nigeriano, repertoriado como traficante. A maneira como o caso aparece descrito na capa de um jornal (e lida de véspera para os milhões que seguem a televisão por cabo) é a seguinte: “Rituais africanos podem ter estado na origem do crime”.

A palavra-chave é “podem” — aquele verbozinho que permite a qualquer escriba de meia tigela escapulir-se aos deveres do rigor. Não é preciso qualquer facto de suporte. Rituais africanos tanto “podem” como, se calhar, “podem não” ter estado na origem do crime. Só não se diz “rituais escandinavos” porque, é bom de ver, o principal suspeito é negro e não louro. Os “rituais africanos” estão lá para nos lembrar disso e de mais qualquer coisa: a sugestão é que qualquer africano pode ter “rituais” que façam dele assassino em potência. E esta enormidade passa incólume pelos jornais italianos do nosso tempo.

Nos programas de debate, os políticos de direita, e mesmo de centro-direita (se é que faz sentido chamar-lhes isso, quando estão todos aliados com a extrema-direita) atropelam-se para denunciar os políticos de centro-esquerda, que estiveram nos últimos anos no poder. Como é possível que o Presidente da República não tenha ligado no próprio dia à família da jovem para se solidarizar com ela? Como é possível que o primeiro-ministro não tenha anunciado medidas para pôr cobro a situações como estas? Por momentos, não deve haver quem não siga o raciocínio. Não deve haver ninguém que imagine por um segundo a dor da mãe, a tragédia na família da jovem, e não concorde que um telefonema seria o mínimo dos mínimos, e que não gostasse de ver logo as medidas indispensáveis do governo para acabar com estes crimes.

Na Itália há crime organizado. A taxa de homícidios não é alta por comparação com o resto da Europa, mas há em média pelo menos um assassinato por dia — e os da autoria das várias máfias particularmente escabrosos. Os políticos de direita não mencionam se, quando estavam no poder, ligavam no próprio dia a todas as famílias das vítimas. Anunciam que “mandarão para casa os imigrantes” — os mais cínicos, como Matteo Salvini, da Liga Norte, acrescentam “com bons modos” — mas não falam de medidas para conter os homicídios perpetrados pelas máfias, ou os que resultam de violência doméstica, ambos mais frequentes do que qualquer homicídio em que um imigrante seja o principal suspeito. E nenhum desses políticos menciona que, na Itália atual, já se pode falar de violência fascista no quotidiano: nos últimos dois anos houve várias dezenas de agressões e ataques violentos da autoria de grupos fascistas (incluindo pelo menos o assassinato de um imigrante). Já os desenvoltos políticos italianos passaram à próxima provocação quando recuperamos do choque e nos lembramos: isto acontece porque a Itália está em campanha eleitoral, porque a jovem assassinada era branca, e porque o principal suspeito do crime é negro.

Passado uns dias, outra notícia. Na mesma região, um jovem, de extrema-direita e ex-candidato da Liga, saiu à rua armado e disparou sobre seis pessoas: todos os negros que encontrou e conseguiu alvejar (no final, disparou sobre uma sede local do Partido Democrático, atualmente no governo). E, de repente, nenhum político italiano — muito menos Salvini, do partido pelo qual o criminoso foi candidato — faz a ligação com o racismo ou a extrema-direita. Pelo contrário. A porta-voz do partido fascistóide da moda — os “Irmãos de Itália”, que Berlusconi anunciou incluir na sua coligação de governo — escandaliza-se: “agora querem fazer disto um problema de racismo! não há racismo nenhum! há um problema de imigração”. Pois. Quando um criminoso que é leitor devotado do Mein Kampf e tem um historial de declarações racistas sai à rua para matar gente de pele escura, a senhora tem dificuldades em ver ligação com o racismo — ainda se houvesse ali uma história de ritual africano, talvez se tornasse logo mais arguta e menos obtusa.

Há na ciência política uma grande discussão sobre se se deve chamar “populista” ou “fascista” à extrema-direita radical europeia. O caso de Itália, onde o fascismo está de boa saúde e o populismo convive bem com isso, sugere-nos que estamos a chegar ao ponto em que tal distinção se tornará, na prática, irrelevante.

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