Hoje é dia de virar o crepe

Segundo uma tradição belga e francesa, 2 de Fevereiro é “o dia dos crepes”. Saiba como surgiu o dia de La Chandeleur e a tradição de virar o crepe.

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“O crepe já é mencionado nas histórias bíblicas e existe desde a antiguidade” DR

E se lhe dissessem que há um dia oficial só para comer crepes? Esta sexta-feira, 2 de Fevereiro, é dia de comer crepes, segundo uma tradição belga e francesa. Não só se comem crepes, salgados ou doces, como há uma particularidade: virar o crepe. As famílias, sobretudo as crianças, fazem os crepes numa frigideira e lançam-nos ao ar com a mão direita, para os virar, enquanto seguram uma moeda de ouro na mão esquerda. Se o crepe virar e cair direito na frigideira, acreditam belgas e franceses, o ano será próspero. Mas como surgiu o dia de La Chandeleur e esta tradição?

“Se remontarmos às origens, na época dos romanos, a Chandeleur era uma festa em honra do deus Pã, divindade da natureza. Durante toda a noite, os crentes percorriam as ruas de Roma transportando tochas [chandelles, em francês]”, explicam Anne-Laure e Elsa, da creperia Mad'eo em Paris, numa resposta por escrito ao PÚBLICO. “La Chandeleur tornou-se depois uma festa religiosa associada à Apresentação de Jesus no Templo. Hoje em dia, é sobretudo uma ocasião para saborear crepes, em família ou entre amigos”, contam.

Vamos primeiro às origens dos crepes: “Secados ao sol ou estendidos sobre uma chapa quente, modelados com as mãos ou esticados com uma espátula (rozell), qualquer que seja a sua cor, a sua forma, ou o cereal com que é confeccionado, o crepe já é mencionado nas histórias bíblicas e existe desde a antiguidade”, explica Pierre Gwendal, secretário da Fédération de la Crêperie, num e-mail enviado ao PÚBLICO.

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Calendário, 1885 (A. Saladini) DR

Reza a lenda que, em 1490, a duquesa Anne, então com 13 anos, passeava com o seu séquito pelas terras do pai, François de Bretagne, perto do castelo de Nantes. Apanhados por uma tempestade, o grupo refugiou-se na humilde cabana de um lenhador. Pierre le Faouet, a mulher e a filha não tinham muito mais do que farinha de trigo-sarraceno entre os seus mantimentos. A filha do lenhador, com a farinha, fez uma iguaria cozinhada na lareira.

“Seduzida pelos crepes de trigo-sarraceno, a duquesa Anne decide estender o cultivo desse trigo a todo o seu ducado. Os camponeses bretões aproveitaram a oportunidade pois o cultivo desta planta requer pouco trabalho. Embora o seu rendimento seja irregular e fraco, permite uma colheita ao fim de três meses, o que lhe valeu o nome de ‘planta dos cem dias’. Esta cultura tornou-se ainda mais preciosa pelo facto de ter impostos baixos, o que tornou possível a muitas famílias pobres alimentarem-se deste grão transformado em farinha”, conta Pierre Gwendal.

Este tipo de crepe mais escuro, especialidade bretã, “obtinha-se batendo durante muito tempo a massa com o punho e cozia-se sobre pedras ou placas de ferro fundido”, refere o secretário da federação que junta crêpiers (profissionais que fazem crepes) e crêperies (estabelecimentos que se dedicam à confecção e venda de crepes) que ainda fazem os crepes à mão. Este tipo de crepe salgado (galette em francês) “podia-se cortar para acrescentar à sopa ou guarnecer uma grande variedade de pratos locais. O crepe de sarraceno começou depois a ser degustado como sobremesa, as crêpières (senhoras que confeccionavam crepes) acrescentaram ovos à massa e perfumavam-nos com flor de laranjeira ou canela. Assim nasceu o crepe doce. Pouco depois, o trigo viria a substituir o sarraceno e por fim o leite entrou na sua composição”, nascendo assim os crepes de tom claro.

Quanto à tradição de virar o crepe, esta é também muito antiga e de origem semelhante: “As famílias camponesas seguiam rituais muito precisos com o intuito de assegurar riqueza para todo o ano. Os camponeses faziam saltar o primeiro crepe com a mão direita enquanto seguravam uma moeda de ouro na mão esquerda. A moeda de ouro era de seguida enrolada dentro do crepe que era levado em procissão por toda a família até ao quarto, onde era colocado em cima de um armário até ao ano seguinte. Eram recuperados então os restos do crepe do ano anterior para dar a moeda de ouro ao primeiro pobre que chegasse”, contam Anne-Laure e Elsa. “Hoje em dia, algumas pessoas ainda viram o crepe com uma moeda de ouro na mão”, rematam.

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Postal do início dos anos 1900 DR

A Chandeleur em Portugal

Das dez creperias em Portugal que o PÚBLICO contactou, cinco não tinham conhecimento ou não celebram o dia da Chandeleur. Dois dos estabelecimentos têm conhecimento que o dia 2 de Fevereiro é o “dia do crepe” e por vezes fazem algum tipo de promoção associada a este dia, outros três estão bem familiarizados com este costume.

Laura Gonçalves é parisiense e reside em Portugal há um ano e meio. Seis meses depois de chegar ao nosso país abriu a creperia Le Bar à Crêpes no Largo da Graça, em Lisboa. Apesar de ter nome português, Laura fala com sotaque francês. O pai nasceu e viveu em Portugal mas foi para França com 16 anos. “La Chandeleur é uma festa de família, fazemos crepes doces e galettes de sarraceno. É uma festa importante em França, apesar de não ser feriado, e celebra-se sobretudo com as crianças”, explica por telefone.

“As crianças é que têm o costume de virar o crepe. Nunca fiz com as moedas, talvez noutras regiões façam”, conta. A sua creperia encontra-se neste momento fechada para férias mas volta a abrir portas a 16 de Fevereiro, altura em que vão celebrar o primeiro aniversário e uma “Chandeleur atrasada”.

Em Vila Nova de Gaia, a Crêperie Pascal tem uma acção especial neste dia, bem como promoções na loja. Para celebrar a Chandeleur, os crêpiers deste estabelecimento nortenho vão a algumas empresas francesas instaladas no Porto equipados com máquinas para fazer crepes. Os funcionários das empresas poderão escolher o que querem no seu crepe e degustar os protagonistas deste dia.

Ricardo tem 30 anos, que é responsável pela Crêperie Pascal, foi viver para França em tenra idade. Tem dupla nacionalidade e regressou há três anos e meio para começar este negócio. “A Chandeleur é uma festa familiar muito comum em França, sobretudo com as crianças. Todos comem crepes mas a tradição de os virar é celebrada apenas pelas crianças. Não é muito comum recorrer às moedas de ouro, mas com dinheiro torna-se mais giro para os miúdos”, conta o antigo residente de uma localidade perto da cidade francesa de Limoges. Desde que está em Portugal não tem o hábito de celebrar este dia em casa, uma vez que “já são muitos crepes todo o dia na loja”.

Não muito longe, na Foz do Porto, situa-se a Creperia La Bombarde. Luísa Cabral é a dona do estabelecimento e conhece o dia da Chandeleur por causa do marido bretão. É costume, na sua loja, realizar uma promoção neste dia, normalmente oferecendo um crepe na compra de outro. Mas em casa não tem o hábito de celebrar: “Já temos crepes na loja o ano inteiro, então em casa não costumamos celebrar o dia da Chandeleur”, conta-nos por telefone. “Mas na Bretanha, o berço dos crepes, é muito comum. Há muitas tradições tais como fazer saltar o crepe, sei que é uma festa pagã. O crepe está associado ao sol, ao dinheiro e à prosperidade”, explica Luísa.

Ficou com água na boca? Deixamos-lhe uma receita de crepes doces para aproveitar da melhor maneira este “dia dos crepes”.

Texto editado por Hugo Torres

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