Mulheres da música pedem demissão do presidente que acha que elas têm de trabalhar (ainda) mais

O presidente da Academia Discográfica acha que as cantoras têm de “step up”; elas exigem que ele "step down" – que se demita. Efeito Weinstein e momento #MeToo em ebulição na indústria musical.

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Alessia Cara, a única cantora a solo a subir ao palco para receber um Grammy em 2018 CARLO ALLEGRI/Reuters
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Neil Portnow LUCAS JACKSON/Reuters
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Kesha, Cindy Lauper e Cardi B após a actuação LUCAS JACKSON/Reuters
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Portnow e Jay-Z ANDREW KELLY/Reuters
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Miley Cyrus e Elton John em palco LUCAS JACKSON/Reuters

No domingo, na esteira de uns Grammys esmagadoramente masculinos, o presidente da Academia Fonográfica norte-americana dizia que as mulheres do meio musical têm de “step up” – “melhorar” ou “intensificar” o seu trabalho para terem lugar na indústria. Nos dias seguintes, a resposta de Neil Portnow à pergunta da Variety foi recebendo cada vez mais críticas até agora ser pedida a sua demissão. “Nós estamos à altura [outra acepção de ‘step up’] todos os dias e fazemo-lo há muito tempo. O facto de não perceber isto significa que está na altura de se demitir” – “step down” –, pede um grupo de mulheres responsáveis da indústria discográfica e artística.

A resposta a uma pergunta da Variety, no domingo, “é espectacularmente errada e insultuosa e, no seu cerne, ignorante quanto ao vasto corpo de obra criado por e com mulheres”, dizem as signatárias depois de uma semana de críticas de cantoras como Pink, Lorde, Katy Perry, Sheryl Crow, das Haim ou de Kelly Clarkson. O grupo é liderado pela advogada Rosemary Carroll, que representa Courtney Love ou The Strokes – e não conta com qualquer responsável de editoras e chancelas discográficas.

É composto, entre outros nomes do meio, por promotoras, relações públicas ou marketeers, pelas managers Ty Stiklorius e Caron Veazey, que representam John Legend e Pharrell Williams, respectivamente, pela importante agente do hip-hop Cara Lewis ou por Katie Vinten, vice-presidente do grupo musical Warner/Chappell.

Divulgada na quinta-feira, a carta aberta é endereçada a Portnow, mas também ao problema da representatividade das mulheres numa indústria onde, indubitavelmente, têm grande visibilidade, sobretudo na pop, mas aonde ainda só tinha chegado timidamente o momento #MeToo ou o movimento Time’s Up. No final de 2017, o efeito Weinstein levou à denúncia por várias artistas, sobretudo da cena indie, de casos de assédio e violência sexual; Kesha, a cantora conhecida por hinos de discoteca que acusa o seu produtor de abusos sexuais, era uma voz pop quase solitária. Nos meses seguintes, várias acusações vieram a público contra Russell Simmons, o poderoso homem do hip hop e contra alguns executivos.

Sintomaticamente, a carta das 21 executivas do sector termina com o cada vez mais habitual “Time’s up, Neil” – “o teu tempo acabou”, emulando o nome da organização que tem como membros fundadores Oprah Winfrey ou Reese Witherspoon e que visa apoiar as vítimas e combater o assédio. Winfrey, esta semana, eliminou a participação de Simmons do seu próximo livro em reacção às alegações contra o fundador da Def Jam Records.

Na noite musical da temporada de prémios, depois de uns Globos de Ouro dominados pelas vozes das mulheres que pedem o fim de uma cultura de assédio e mais igualdade, os Grammys só tiveram em palco uma mulher em palco para aceitar um prémio a solo – Alessia Cara foi receber o Grammy de artista revelação, que é aliás o prémio que tem sido mais paritário nos últimos anos nos Grammys, ao contrário de Canção ou Álbum do Ano. Embora Shakira tenha sido premiada com o gramofone dourado de Melhor Álbum de Pop Latina, Pink tenha interpretado o seu Wild hearts can't be broken, Miley Cyrus tenha actuado com Elton John, e Lady Gaga e Cardi B também tenham estado em palco, Lorde, a única nomeada para Álbum do Ano, não teve honras de actuação a solo. São algumas das críticas a uma cerimónia com o habitual poder simbólico dos eventos agregadores e televisivos, que teve ainda assim um momento #MeToo com a actuação de Kesha.

Mas foi atrás do palco que tudo se precipitou, com a resposta seca de Neil Portnow num momento de crispação de género. Para as mulheres serem mais representadas no sector e nos prémios “tem de começar com… as mulheres que têm a criatividade nos seus corações e nas suas almas, que querem ser músicas, que querem ser engenheiras [de som], produtoras, e que querem fazer parte da indústria ao nível executivo… [Elas] têm de ‘step up’ porque penso que seriam bem-vindas. Não tenho experiência pessoal com esse tipo de muros que vocês enfrentam mas penso que nos cabe a nós – nós como indústria – tornar esse tapete de boas-vindas bastante óbvio, criar oportunidades para todas as pessoas que querem ser criativas e dar novas oportunidades e criar isso para a nova geração de artistas”, disse Portnow.

Segunda-feira, Portnow pediu desculpas pelo uso da expressão e pela sua resposta. “Lamentavelmente usei duas palavras, ‘step up’, que, quando retiradas do contexto, não transmitem aquilo em que acredito e a ideia que tentava transmitir”, disse em comunicado. “A nossa indústria tem de reconhecer que as mulheres que sonham com carreiras na música enfrentam barreiras que os homens nunca enfrentaram”, disse, prometendo trabalhar para melhorar essa realidade. “Não temos de cantar mais alto, de saltar mais alto ou de ser mais simpáticas para darmos provas”, respondem as executivas na carta dois dias depois.

O grupo de 21 mulheres do sector exige a sua demissão, citando os números que suportam as suas reivindicações e que desmontam a resposta do presidente da Academia que entrega os mais importantes prémios musicais americanos. #GrammysSoMale, podia resumir-se (e foi mesmo o que fez a Variety, a revista especializada na indústria de Hollywood que fez a pergunta inicial): “Em 2017, 83,2% dos artistas eram homens e 16,8% eram mulheres, o número mais baixo em seis anos para as mulheres artistas. Foram nomeadas 899 pessoas para um Grammy entre 2013 e 2018. Uns chocantes 90,7% desses nomeados eram homens e 9,3% eram mulheres”.

E citam números que ecoam os que persistem no mais discutido mundo do cinema, com escassas produtoras, autoras de canções ou apenas uma mulher presidente de uma editora e um homem não-branco no mesmo cargo em toda a história da indústria discográfica americana. “Simplesmente não há oportunidades ou influência suficiente que seja dada ou esteja ao alcance das mulheres, das pessoas não-brancas e daqueles que se identificam como LGBTQ”, dizem, lamentando que “os Grammys não representem de forma justa o mundo em que vivemos”. Os comentários de Portnow “foram outro estalo na cara das mulheres, independentemente de se foram ou não intencionais ou retirados do contexto”, dizem as autoras da carta, que consideram que o responsável “é parte do problema”.

A carta foi divulgada pouco depois de a Academia Discográfica ter anunciado, depois de dias de contestação, a criação de uma task force para favorecer e melhorar “a progressão feminina” no meio. Também esta semana, uma petição online que pede a demissão de Neil Portnow foi já assinada por mais de 13 mil pessoas. A semana de ebulição do momento anti-assédio no meio musical foi também inflamada nos EUA com a publicação de um relato online que acusa o poderoso executivo do sector, Charlie Walk, de má-conduta, secundado por muitos outros em várias plataformas. 

O simbolismo das rosas brancas que alguns convidados levaram para a passadeira vermelha dos Grammys como sinal de solidariedade anti-assédio foi, por seu turno, resultado da formação da Voices In Entertainment, uma organização-espelho da Time’s Up de Hollywood para a indústria musical, fundada por Meg Harkins e Karen Rait, que trabalham para a editora e promotora Roc Nation de Jay-Z e para a Interscope/Geffen/A&M Records.

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