Os princípios da incerteza

Este homem tem uma missão: convencer o mundo da bondade das ideias utópicas que persegue. Para isso, escreveu um livro em que conduz o leitor numa viagem interessante pela história de algumas ideias políticas e desafia estereótipos.

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Rutger Bregman é historiador, jornalista e pensador. Utopia para Realistas foi um sucesso de vendas na Holanda e colocou o autor no escaparate dos famosos, o que é raro acontecer a quem propõe utopias Miguel Manso

Rutger Bregman é historiador, jornalista e pensador. O livro que agora chega a Portugal – Utopia para Realistas – foi um sucesso de vendas na Holanda e colocou o autor no escaparate dos famosos, o que é raro acontecer a quem propõe utopias. A reflexão é muito interessante e tem o condão de fugir ao discurso óbvio, ainda que a espaços se note a dificuldade em conciliar o rigor histórico com o carácter especulativo da descrição do ideal.

A entrevista, que decorreu em Lisboa, revelou um homem que não quer cristalizar o seu pensamento e que procura viabilizar a própria utopia – se isso parece uma contradição nos termos, é porque o é. E isso só ajuda à leitura da obra agora publicada pela Bertrand.

Percebe-se rapidamente o contexto: numa Holanda e que o discurso político se divide entre o ódio ao imigrante e a lógica protestante da honradez centrada no trabalho, falta ver para lá do horizonte. Bregman reclama o direito a ver mais longe, a sonhar com algo que ultrapasse o que se tem – até porque, defende, já atingimos o que queríamos. Precisamos de mais. O livro começa por defender as conquistas da sociedade liberal mostrando que, ao contrário de muitas ideias feitas, o planeta evoluiu tremendamente com a globalização. Bregman fornece vários exemplos e apresenta gráficos que confirmam o diagnóstico. Mas afirma que já chega: “acredito que nos iludimos quando confiamos na tecnologia para resolver todos os nossos problemas. Na verdade, essa é uma ideia muito perigosa. Temos de mudar a forma como vivemos. Temos de mudar a forma como pensamos sobre trabalho, riqueza, lazer etc. E sim, a tecnologia será uma excelente ferramenta nesse sentido, mas, como costumo dizer, a tecnologia não é o nosso destino.”

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Miguel Manso

O holandês tem um problema com a actual ausência de ideias em política, especialmente à esquerda. “Historicamente, a social-democracia não está a atravessar um bom momento. Uma das razões para tal é que a esquerda apenas sabe ao que se opõe. Quer atacar a situação actual do neoliberalismo, do establishment, do dinheiro e está contra o racismo, a homofobia etc. Eu acredito que na política a sério também é preciso saber o que se defende. É preciso ter uma visão do futuro. E por isso é que começo o meu livro com uma bela citação de Oscar Wilde – a utopia está sempre no horizonte. Queremos sempre partir para uma nova utopia. E se pararmos, ficamos acabados, porque o paraíso é enfadonho. Não há muito para fazer por lá. E é a partir de Wilde que começa a construir a sua teoria: Fukuyama não tinha razão, a história não acabou – nem pode acabar nunca. A uma utopia conquistada terá de se suceder outra que deve animar a humanidade: acabar com a pobrea, atribuindo a todos os cidadãos do planeta um rendimento básico.

A ideia expressa no livro é admirável e resume-se num princípio simples como sempre são as ideias revolucionárias – que o rendimento básico universal é um meio capitalista para atingir o comunismo, conceito originalmente expresso por Phillipe Van Parjis. Em conversa, vai mais longe: “Isto já não se resume apenas ao comunismo, socialismo, capitalismo, mercado livre etc. Eu defendo isso no meu livro, mas desde então desenvolvi a opinião e acredito que podemos avançar para o que eu designo de estado anarquista. Parece uma contradição, não é? Seria um estado relativamente grande em termos de redistribuição – todos receberiam um rendimento básico universal, acesso a um sistema nacional de saúde e educação gratuita, etc. No entanto, seria um estado muito pequeno em termos de poder. Esse estado não seria responsável pelas escolas, hospitais, não teria poder de decisão sobre onde o rendimento mínimo teria de ser gasto. Nesse sentido, seria um estado anarquista. O que vemos hoje em dia é o contrário: um estado cada vez mais pequeno em termos de redistribuição e cada vez maior em termos de poder.”

Antes de prosseguir, o autor ainda exige uma paragem para desmontar uma outra ideia feita: a de que somos o que fazemos. Recorrendo a diversos estudos que mostram quão infelizes são os trabalhadores, Bregman começa a desmontar o estado liberal pela desconstrução da lógica de trabalhar para viver. E assume que deveria ter ido até mais longe neste aspecto: “Se reescrevesse o livro, iria focar-me mais no verdadeiro desafio, que não é trabalhar menos, mas sim redefinir o que é o trabalho. De acordo com sondagens recentes nos países mais desenvolvidos… por exemplo, uma sondagem no Reino Unido revelou que 37% dos trabalhadores consideram o seu emprego inútil. Considerei ser um valor elevado até ter visto os números nos Países Baixos: 40%. Um terço dos trabalhadores afirma que o trabalho que fazem é inútil… é incrível. Sempre que eu refiro estas estatísticas em debates com economistas, ficam estupefactos e não sabem o que responder, porque é algo inconcebível na sua visão do mundo. Vivemos num mundo capitalista, certo? Devia haver uma mão invisível que elimina todo o trabalho inútil. Mas acontece, e em grande escala. Como tal, temos de repensar o conceito de trabalho, realizar menos trabalho pago e mais trabalho não pago que seja relevante para nós.”

Daqui parte então para o rendimento básico incondicional. Para justificar a ideia, Bregman explica que este está longe de ser um conceito de extremistas. Revela, por exemplo, uma experiência que durou quatro anos em Dauphin, uma pequena localidade do Canadá, que está tão bem documentada e cujos resultados são tão impressionantes que a torna central na narrativa. Outro caso, ainda mais surpreendente, é o plano do Presidente republicano Richard Nixon para efectivar uma ideia progressista na política americana e concretizar a ideia do rendimento universal. O processo falhou, por pouco, mas mereceu um lugar na história que Bregman nos conta. A parte mais sólida do livro é precisamente esta: ao colocar o chapéu de historiador e revelar episódios sobre as experiências de rendimento básico, a causa que defende ganha outra dimensão. Ao mostrar que estas experiências são exequíveis e superam os efeitos pretendidos, valida toda a lógica e consegue de forma eficiente levar o leitor na viagem até ao argumento mais forte: que uma vida sem pobreza é um direito inalienável, incondicional e universal.

Mas como boa utopia, resiste com dificuldade ao exame do detalhe. E o próprio Bregman é parco em pormenores que ajudem a entender como pode ser atingido este ideal. A uma questão sobre como ultrapassar as diferenças de rendimentos nas diversas geografias, responde com outra questão: “Quão utópico é que quer que o mundo seja?” E daí parte para uma ideia ainda mais extrema, a que é assumidamente impraticável e que justifica a parte sobre a utopia no título – ainda que afaste os realistas que aqui chegaram. Rutger Bregman quer a livre circulação de pessoas – mas exige-a a nível planetário, de forma incondicional. É a ideia mais radical do meu livro. Tal como referi, podíamos implementar hoje o rendimento básico universal, devíamos tê-lo feito há 40 anos; E a semana de trabalho de 15 horas também pode ser atingida, somos ricos o suficiente para chegar lá nos próximos 10 ou 20 anos.  A abertura de fronteiras é um assunto completamente diferente. Eu analiso todas as evidências, e há muitas, que provam que a imigração é a ferramenta mais poderosa que temos ao nosso alcance para combater a pobreza mundial e que é benéfica para os países de acolhimento. Se olharmos apenas para o lado empírico da questão, abrir todas as fronteiras parece ser uma excelente ideia.”

Bregman sabe que, nos tempos que correm, esta ideia equivale a uma heresia. As consequências adversas da globalização fazem-se sentir em todas as sociedades, com o aumento galopante da desigualdade e o crescimento de bolsas significativas de pobreza. Pior que isso, o recrudescimento do discurso nacionalista que alimenta os populismos em várias partes do globo partilha de uma mesma aversão à globalização e aos seus efeitos: se há algo que une Trump, Duterte, Strache, Farage e Wilders, é o ódio ao imigrante, pelo que esta parece apenas uma ideia de mau gosto. Só que não: não estou alheio aos sinais dos tempos. Vejo televisão e leio jornais de vez em quando. E como tal, compreendo as reacções negativas políticas actuais. No entanto, acredito que o tipo de linguagem usada e a narrativa que transmitimos sobre nós próprios é crucial. Por exemplo, no Verão de 2016, não sabia o que pensar sobre a chanceler alemã, Angela Merkel. Estamos a falar do Verão em que a Grécia foi destruída e a democracia grega foi sepultada pela União Europeia… uma altura terrível para o Eurogrupo. E depois veio a crise dos refugiados (um termo que não aprecio), e Merkel teve uma atitude brilhante! O que ela disse foi: “Somos alemães e somos incríveis. Somos melhores do que os franceses, do que os holandeses e do que os britânicos. Nós conseguimos enfrentar esta situação. Na verdade, sabemos como gerir uma situação destas. Deixem-nos vir. Conseguimos lidar com isto.” Ela recorreu a linguagem patriótica e nacionalista para defender a abertura e a tolerância. Em resposta, entraram na Alemanha quase um milhão de refugiados. E a seguir, foi reeleita. O que ela fez é espantoso. Esta é uma estratégia que os progressistas ou pessoas de esquerda, como lhe quiserem chamar, deviam usar mais frequentemente – recorrer a linguagem nacionalista e patriótica para defender as suas ideias.” 

Por fim, Bregman revela-se um pragmático. E deixa nas entrelinhas um próximo volume: aquele em que explicará como tornar exequível a utopia. Porque o autor será o primeiro a reconhecer que as suas ideias serão demasiado tentadoras para que não se tente a sua concretização, aqui e agora.

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