Na modernidade também cabe a cozinha de matriz tripeira

Quase a chegar aos 70, o Tripeiro viu entrar pela porta dentro o ambiente moderno e descontraído que procura atrair as novas gerações e atitudes. Mudou-se o contexto mas procura manter-se o gosto caseiro e a gastronomia das origens.

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Nelson Garrido

Casar tradição e modernidade é uma tendência que cruza todas as dimensões da actualidade, um movimento que não deixa de lado a restauração. Exemplo disso é a recuperação do Tripeiro, um restaurante que ao aproximar-se da idade madura (abriu em 1952) já padecia notoriamente dos males do tempo.

A recuperação do Tripeiro foi feita por gente com experiência noutros espaços, como Cantina 32, Casa de Pasto da Palmeira, Puro 4050 ou o mais recente Mundo, todos em zonas que o turismo tem revolucionado e cujos conceitos adoptam uma particular coreografia, de espírito retro na decoração e cozinha multicultural. Neste caso há uma evolução: queriam antes matar saudades da comida caseira e voltar às origens da gastronomia da cidade, mas dando a volta ao estilo para que pudesse atrair gente nova a um restaurante marcado pelo tempo.

A par da cozinha de matriz tripeira salvaram-se as paredes e o Tripeiro tem agora um ar moderno, rústico e descontraído. Talvez até demasiado descontraído para garantir o propósito de manter a velha clientela, que não é difícil imaginar a torcer o nariz às mesas nuas, sem mantel ou guardanapos em tecido e com os talheres amontoados num tabuleiro.

A tendência de vanguarda é acentuada pela elegante decoração de estilo rústico que destaca as madeiras nuas, bancos múltiplos com almofadas coloridas encostados às paredes, luz indirecta e uma área descontraída de acolhimento à entrada. Outro elemento decorativo que chama a atenção é a utilização dos antigos tabiques da construção a enquadrar os pontos de luz nas paredes.

Na carta, além das tripas, claro, há o polvo (assado no forno ou em filetes panados), filetes de pescada, nispo de vitela, pernil assado ou os panadinhos de vitela com arroz de tomate que fazem jus à cozinha de sempre do restaurante. Destaca-se também a variedade de entradas ou pequenas doses capazes de proporcionar um tipo de refeição mais ligeira e descontraída, que parece ser também um dos propósitos da remodelação. E um piscar de olho ao turista e à juventude.

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Nelson Garrido

São à volta de vinte as “Entradas”, onde se destacam sopa e peixe, papas de sarrabulho, amêijoas do Algarve à Bulhão Pato, ervilhas com presunto, escabeche de bacalhau, tripinhas enfarinhadas ou polvo com molho verde. Há também três que são, digamos assim, colectivas, e juntam três a cinco diferentes produtos.

Provaram-se as “minipataniscas” (4,50€), os “peixinhos da horta” (5€) e os “croquetes de alheira com queijo serra” (5€). Muito boas as quatro pataniscas, fofas e escorridas, com bacalhau e cebola a fazerem-se notar na boca, e saborosas; correctos e óbvios os dois croquetes em bola crocante com queijo no centro; menos convincentes os peixinhos de feijão-verde com um polme farináceo que acompanhavam com cebola caramelizada.

Nos “Peixes” as propostas chegam à dezena, incluindo filete de robalo, arroz de camarão, açorda de gambas, lombo de bacalhau especial e cataplana de mariscos, os dois últimos em doses para duas pessoas (34 e 29€, respectivamente). Convocou-se o “bife de atum com milho frito” (16€) e também o “bacalhau lascado com grelos e broa” (15€).

Primoroso o naco de atum, alto e no ponto óptimo de calor, de proporção generosa, tal como os elegantes losangos de milho frito à moda da Madeira que o acompanharam. Brilhou à mesa e ficou, de longe, como a estrela da refeição. Quanto ao bacalhau, cumpriu sem desmerecer. Com os grelos em migas e a broa crocante como cobertura, escasseava o sabor. Muito provavelmente porque eram igualmente escassas as lascas do dito!

Atingem igualmente a dezena as ofertas de “Carnes”, da alheira de caça à posta à Tripeiro, do bife à portuguesa ao nispo de vitela e pernil assado. Convocou-se o “rosbife” (14€), com carne de qualidade e trabalho culinário competente, com molho de sabor intenso de especiaria (noz moscada?) que se sobrepunha no palato. Batata palha e esparregado acompanhantes a deixar a sensação de produtos pré-cozinhados. O “tomba lobos” (1,50€) é uma competente açorda de tomate com gordura e carnes de porco ao estilo alentejano, a que acresce ainda uma saborosa bochecha de porco estufada.

Em honra à casa, e já por pura gulodice, solicitou-se também uma pequena dose de “tripas à moda do Porto com arroz” — servem-se todos os dias (10,50€) —, que acabou por não ser reflectida na conta final. Simpatia do serviço, presume-se!

Bem elaboradas e com todos os ingredientes da receita, mas que com um pouco mais de intensidade de sabor estariam perfeitas. Problema que podia até ser atenuado se o arroz branco de acompanhamento fosse capaz de absorver o molho e concentrar sabor. Coisa só ao alcance da nossa variedade carolino, o que, como ficou evidente, não era o caso.

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Nelson Garrido

Nas sobremesas, a tradição está garantida com o pudim abade de Priscos, leite-creme queimado, mousse de chocolate ou os gelados Neveiros (que são também uma tradição da cidade). Também a “tarte de requeijão com doce de abóbora” (4,50€), o “queijo serra” (6,50€) e o “queijo dos Açores” (5,50€) que foram servidos se portaram à altura das exigências da tradição. Mesmo com o representante ilhéu prejudicado pela baixa temperatura que lhe “prendia” textura e sabor.

Numa carta de vinhos que percorre o panorama nacional mas com fornecedor exclusivo, o Dão acabou por constituir refúgio seguro e de grande satisfação com dois vinhos da Quinta dos Carvalhais. Por um lado, a frescura e harmonia do Colheita Branco 2016; por outro, a garra e potencial gastronómico do belo Alfrocheiro 2015.

Com serviço diligente e empenhado, o Tripeiro pode até nem precisar de fazer das tripas coração para equilibrar a herança do passado com as exigências do presente. E como o equilíbrio é uma arte que se alimenta da competência, parecem estar reunidos os principais ingredientes.

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