A subtil refracção da luz da memória

Quatro contos onde a Sicília do autor de O Leopardo volta a ser território explorado com a argúcia de uma arte maior. Contos exímios a descodificar os mais enigmáticos sinais do código social.

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Contos exímios a descodificar os mais enigmáticos sinais do código social

As ficções reunidas nesta colectânea, prefaciada e organizada por Gioacchino Lanza Tomasi, primo afastado de Lampedusa (que pouco antes de morrer adoptaria aquele parente dilecto), correspondem a uma apuração sucessiva de versões textuais, que beneficiaram, inclusivamente, da “descoberta de algumas passagens que são incluídas nesta nova edição” (p.11). Subdividem-se, de acordo com a distinção avançada por Gioacchino Lanza Tomasi, num “texto autobiográfico” — Recordações de Infância — e em três “histórias” — A Alegria e a Lei, A Sereia, Os Gatinhos Cegos. No entanto, todos eles podem perfeitamente ser designados como contos mais ou menos breves. Acompanham-nos introduções, extensas notas (não raras vezes de grande erudição e sagacidade) e comentários da mais variada índole, sempre da autoria de G. Lanza Tomasi. Dos quatro contos, é possível que o mais consumado seja A Sereia — que já beneficiara de edição portuguesa, traduzida por José Colaço Barreiros (Hiena, 1993) —, de que se incluem mesmo uns Fragmentos de uma primeira versão. Seguem-no, muito de perto, Recordações de Infância e Os Gatinhos Cegos. Acresce que este último, como recorda GLT, foi o derradeiro texto escrito por Lampedusa, apresentando, além disso, evidentes pontos de contacto com a sua obra-prima, e único romance que assinou, O Leopardo (Dom Quixote, 2016, trad. José Colaço Barreiros).

A Alegria e a Lei suscita um dos exemplos que melhor demonstram como os juízos de Gioacchino Lanza Tomasi conseguem, por vezes, oscilar entre algum excesso de zelo e o simples insólito de certos postulados. Se é indiscutível que aquele conto é, nas palavras de GLT, “a peça menos interessante” (p.131) do conjunto, talvez tenha sido menos avisado descrever o texto castigado como “exercício na linha de Pirandello ou de Tchekhov” (id.). Mesmo que a tónica esteja em “exercício”, e não nos nomes aludidos, a convocação deles em nada se coaduna com a censura feita a um conto, valha a verdade, sofrível. Realmente, pela sua brevidade, e dada a escassez da sua temática — a hipótese ou a inviabilidade de “uma pausa na angústia” (p.134) financeira de um modesto funcionário —, o conto contrasta com os restantes, não conseguindo erguer-se muito acima de uma vinheta (indigna, quer de Tchekhov, quer de Pirandello). Em contrapartida — e apesar de alguns depoimentos menos acertados —, o organizador é um conhecedor profundo das minúcias do trabalho de Lampedusa e um intérprete notável dos mecanismos e processos da sua escrita. Como, por exemplo, quando destaca aquilo a que chama “transposições da memória para a fantasia” (p.23). O organizador refere-se, nesse passo, a Recordações de Infância, cujo âmbito a “Introdução” de Lampedusa definia o mais nitidamente possível: “As recordações de infância consistem, segundo todos crêem, numa série de impressões visíveis, algumas das quais muito nítidas, privadas no entanto de qualquer nexo cronológico.” (p.27) É ainda o próprio escritor quem confidencia uma releitura então recente da Vida de Henry Brulard de Stendhal. Desta autobiografia romanesca, deixada incompleta pelo grande autor francês, colheu Lampedusa, além do exemplo stendhaliano dos esquissos e plantas com que vai pontuando a sua narrativa, a metodologia que consiste em recriar, através de uma textura ficcional, a matéria biográfica.

Recordações de Infância revela esse apego senhoril às “CASAS no sentido arcaico e respeitável da palavra” (p.39) que percorre O Leopardo e que representa mesmo um papel decisivo logo nos seus primeiros parágrafos (e não serão despiciendas as maiúsculas). Uma característica comum, aliás, a Os Gatinhos Cegos, que se inicia, precisamente, com a descrição da “planta da propriedade Ibba” (p.209), na sua escala, no pormenor dos seus suportes, no rigor das suas medições, na verosimilhança com que se procede à passagem para o concreto da paisagem. Esta importância simbólica do património e da terra mostra-se afim do que O Leopardo chamava “obscuro instinto atávico”, metaforizado por essa notória ruga situada entre a testa e o nariz que era “a marca atávica dos Salina”. Lampedusa escreveu mesmo numa carta (reproduzida na edição portuguesa de O Leopardo): “A Sicília é aquele que é: de 1860, de antes e de sempre”. Além deste enraizamento na tradição e na força de pertença, há outro elemento que une o romance de Lampedusa e estes contos: a premência com que se descreve a geografia e o clima sicilianos: “a paisagem bela e tremendamente triste da Sicília” (p.52), os “tristes vales sicilianos” (p.95), ou a “Sicília que, por pobreza e incúria, é a região mais destruidora que existe” (p.76) possuem manifestas afinidades com O Leopardo: por exemplo, onde o romance descreve “a fúria do sol escaldante”, ou um “clima que nos inflige seis meses de febre a quarenta graus”.

Em Os Gatinhos Cegos, Lampedusa ensaia a etiologia de “uma classe que via fugir a sua própria supremacia latifundiária, ou seja, a própria razão de ser” (p.226). Assim expande, abrindo para outras direcções sociais e comportamentais, o que, em O Leopardo, havia sido o supremo desdobrar de um outro estrato da sociedade palermitana: a nobreza. Os Gatinhos…, esclarece G. L. Tomasi, constitui a génese de um romance que a morte não permitiu a Lampedusa desenvolver, e que pretendia ser uma espécie de contraponto burguês à hegemonia aristocrática de O Leopardo, onde já se descreve a burguesia como “uma classe em ascensão”. Ou seja, o livro projectado seria “a segunda parte de uma Comédie Humaine”, como propõe o comentador (p.207). As subtis relações entre as linhagens nobiliárquicas de O Leopardo e deste projecto de romance encontram-se já, embrionariamente, conforme assinala Tomasi, no magnífico conto A Sereia, cujo “jovem jornalista é um descendente dos Salina [nome de família do protagonista de O Leopardo]” (id.). Nesse conto está porventura mais em evidência, entre outros aspectos porventura difíceis de isolar, que a “arte oratória de Lampedusa”, como defende G. L. Tomasi, “é muito distante da retórica fóssil. Narra no tempo mítico, quando os deuses falavam com os homens” (p.153). Eis o que talvez impeça este relato de fazer decair o nível mantido, sem que o ridículo ou o improvável tivessem conseguido levar de vencida o que a ficção ergue a tanto custo. Como se lê nesse prodigioso livro de Javier Marías chamado Vidas Escritas, Lampedusa “detestava tudo o que fosse explícito” (Quetzal, 1996, trad. Salvato Telles de Menezes), e é possível que poucos escritos como A Sereia o pudessem confirmar tão integralmente. A narração do prodígio mitológico — a união de um mortal e de uma sereia — é de tal forma dissipado pela própria narração, tão diluído pelo avanço do enredo, que não é propriamente a sua inserção quase no fim do conto que preserva a sua dignidade composicional. Há um constante movimento de transferência de protagonismos, de níveis e hierarquias de sentido, de descontinuidades cronológicas, que só uma arte superior saberia harmonizar sem incorrer em mistura indigesta. O passado do velho senador La Ciura, justamente um pagão e um classicista, provoca recuos na narração, à medida que o presente do jovem jornalista — homem aparentemente da actualidade e dos factos — se confronta com esse passado impreciso que faz abater a própria solidez da noção de tempo. Porque é de uma “Sicília eterna” (p.164) que se trata. Já não a do atavismo de O Leopardo, ou de Os Gatinhos Cegos, mas um território que lhe subjaz e que diluiu todas as fronteiras da cronologia.

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