O arquitecto Saraiva e a incitação à violência

Por mais primária que seja a forma como José António Saraiva abordou o problema, nada justifica a intervenção da CIG, mais uma vez a reboque das redes sociais.

A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) é um organismo estatal na dependência directa da Presidência do Conselho de Ministros. São os nossos impostos que pagam os seus serviços e é em nome do Estado português que exerce a sua função. Isto significa que o Estado português acaba de defender, via CIG, que a publicação de uma opinião negativa e controversa sobre as operações de mudança de sexo pode configurar a prática de um crime. Como se já não bastasse a triste figura que andou a fazer a propósito dos blocos de actividades para meninos e para meninas, a CIG decidiu dar mais um salto na escala do absurdo, declarando que deve ser punido por lei o simples acto de escrever num jornal que a cirurgia de mudança de sexo “é uma coisa aberrante”, e requisitando a intervenção do Ministério Público para apurar a eventual “responsabilidade criminal”.

Tudo começou com um artigo de opinião do inevitável José António Saraiva, cujo polémico currículo em matérias LGBTI é conhecido. Num artigo de opinião intitulado “E se um homem se sentir galinha?”, o arquitecto Saraiva insurge-se contra as cirurgias de mudança de sexo, considerando-as “burlas”, “embustes” e “experiências limite feitas com pessoas”, que “criam uns entes desgraçados, uns despojos humanos que serão sempre olhados de lado pela sociedade e ostracizados”. A forma como Saraiva aborda o tema, a partir de um documentário que viu a altas horas da noite, é tristemente primária, o que é pena, porque o assunto é bem interessante. Há meia-dúzia de meses foi publicado em Portugal o livro Enigma – História de uma Mudança de Sexo, da escritora e jornalista Jan Morris, hoje com 91 anos, e a biografia de Morris (nascida James Morris) é uma óptima porta de entrada para um mundo que Saraiva manifestamente desconhece. Sugiro que a editora Tinta-da-China lhe ofereça um exemplar.

Mas por mais primária que seja a forma como José António Saraiva abordou o problema, nada justifica a intervenção da CIG, mais uma vez a reboque das redes sociais. Aliás, a prova de que são as campainhas das redes que fazem a CIG salivar é que o comunicado refere que o artigo foi publicado “no semanário Sol, no dia 1 de janeiro de 2018”, quando ele foi publicado a 30 de Dezembro, sábado. O dia 1 de Janeiro é apenas a data em que o artigo ficou disponível online, e possivelmente a data em que ele terá chegado ao mail ou ao Facebook dos senhores da CIG, com certeza já embrulhado na devida indignação.

E o que fez a CIG? Contestou a posição de Saraiva? Desmontou os seus argumentos? Recorreu a estudos para fundamentar a sua posição? Dedicou-se àquela coisa, cada vez mais démodé, chamada “debater”? Nada disso: enviou queixas ao Ministério Público, à ERC, à Comissão da Carteira e ao Sindicato dos Jornalistas acusando Saraiva não apenas de delito de opinião, mas de “favorecer a prática de atos de violência homofóbica e transfóbica”. E isto, meus senhores, já não é só ridículo – é absolutamente inadmissível. Um organismo estatal – não a ILGA, mas a CIG – acusar um cronista de favorecer a violência homofóbica por escrever que considera desumanas as operações de mudança de sexo é uma facada na lógica e na mais elementar liberdade de expressão. Reparem: para a CIG, a opinião de Saraiva não apenas discrimina – ela instiga à violência e ao crime! Está tudo doido. A presidente da CIG devia preocupar-se menos com a mudança do sexo dos outros e mais com a mudança da sua própria cabeça.

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