O “consenso de Pequim”: a Internet como instrumento de soberania e controlo

Se o modelo chinês soberanista se afirmar, caminharemos para um novo “consenso de Pequim”. A Internet irá ser um instrumento ao serviço do capitalismo autoritário e do controlo dos cidadãos, com uma eficácia que nem a visão distópica de Orwell conseguiu imaginar.

1. Para qualquer observador atento do mundo não é novidade que a Internet e a lógica da sociedade em rede estão a alterar profundamente os processos sociais, económicos e políticos. Mas será possível que o ideal tecno-libertário subjacente à Internet dos primórdios tenha aberto o caminho, ainda que de forma involuntária, a sofisticados e abrangentes sistemas de controlo da vida humana? Inevitavelmente vem ao pensamento o sistema monstruoso imaginado por George Orwell no livro 1984. Aí a liberdade e a privacidade do indivíduo eram esmagadas e submetidas aos desígnios de um poder totalitário profundamente opressor. Todavia, quando o livro foi escrito, estávamos em 1948, numa era pré-Internet, anterior às profundas transformações da revolução digital das últimas décadas do século XX. Importa, assim, olhar para as tendências que se desenham a nível mundial neste início de século XXI, quer em Estados de perfil democrático, quer em Estados de tipo autoritário, para tentar perceber o que o futuro nos poderá trazer.

2. É necessário deixar já claro que as democracias ocidentais não estão imunes às piores tendências de vigilância e de controlo da Internet e de invasão da privacidade. O esquema de vigilância em massa implementado nos EUA pela Agência Nacional de Segurança (NSA) não deixa quaisquer dúvidas quanto a isso — e não é um caso isolado em democracias. Foi denunciado em 2013 por Edward Snowden, que, entretanto, teve de abandonar o território norte-americano por ser objecto de perseguição criminal. No cerne das actividades da NSA estava o programa PRISM que permitia a vigilância, em tempo real, da circulação de informação na rede. Os funcionários da agência tinham acesso a dados privados dos utilizadores, incluindo o histórico de pesquisas, correio electrónico, transferências de arquivos, vídeos, fotos, chamadas de voz e vídeo, detalhes de redes sociais e outros. Preocupante é não só a intromissão do Estado na vida privada do cidadão, mas também perceber-se que isso só foi possível com a conivência, nos bastidores, das principais empresas norte-americanas que operam na área das novas tecnologias de informação e comunicação (Google, Facebook, Apple, etc.).

3. As startups de Silicon Valley, para além do seu poder criador de riqueza, têm sido idolatradas como uma irresistível força libertadora e democratizadora. A convicção entusiástica do poder libertador da tecnologia, muito comum na mente ocidental, levou a subestimar, durante demasiado tempo, as possibilidades de vigilância e de controlo trazidas pela sociedade em rede, dentro e fora das democracias. Este quadro mental não configurava como possível, ou, pelo menos como provável, que os regimes autoritários pudessem usar a Internet e a sociedade em rede a seu favor, para se perpetuarem no poder. Mas é isso que está a ocorrer. A Internet como espaço de liberdade é uma escolha política e não algo que decorre da tecnologia, por muito revolucionária que esta seja. Ao contrário da visão ciberutópica, a Internet pode ser usada como o mais abrangente e eficaz instrumento de controlo da vida humana alguma vez criado. A consequência é que entre os diversos cenários de evolução futura, uma extraordinária redução do grau liberdade humana é algo bem possível de ocorrer. A realidade é que existe, já hoje, um grau de sofisticação nas técnicas de controlo da população impensável no passado. O uso da repressão pela força já não é o mecanismo mais eficaz de controlo. Emergiu uma nova combinação de autoritarismo com consumismo, a qual se tem mostrado particularmente eficaz como instrumento de dominação. Promove um ambiente favorável ao consumo, aos negócios e às actividades lúdicas criando cidadãos despolitizados e dóceis face ao poder instituído.

4. Provavelmente nada exemplifica melhor as possibilidades de um sofisticado controlo dos cidadãos do que o sistema de créditos sociais que o governo de Xi Jinping quer implementar na China. O objectivo oficial é criar uma cultura de civismo e de honestidade, o que é compreensível numa sociedade onde a corrupção, a fraude e a pirataria comercial são males enraizados. Mas num Estado com as características da China, onde não existem mecanismos democráticos limitadores e fiscalizadores do exercício do poder, pode ser também uma porta aberta para o totalitarismo. O sistema de créditos sociais, iniciado em 2014 de forma facultativa — mas que se tornará obrigatório em 2020 —, baseia-se numa gigantesca recolha de dados (big data), financeiros, de consumo mas também pessoais, os quais permitirão traçar um perfil de comportamento dos cidadãos e pontuá-lo. Oficialmente trata-se apenas de detectar comportamentos fraudulentos, penalizá-los e desincentivar os cidadãos de os praticar. Mas o que começa como um aparentemente inócuo sistema de rating de crédito, pode, gradualmente, evoluir para um abrangente sistema de vigilância política de massas, onde outras esferas da vida humana serão incluídas, eliminado praticamente a vida privada. Este será o caminho de um totalitarismo sofisticado, onde todos os comportamentos sociais e políticos desviantes, serão, de alguma forma, punidos. Em muitos casos, a punição não passará pela aplicação de medidas policiais ou criminais, mas por poderosos mecanismos de estigmatizarão ou exclusão social com sanções como a proibição de compra de casas para uso pessoal, acesso aos melhores hotéis, frequentar escolas privadas, ou ter um emprego na administração pública.

5. Importa não subestimar a capacidade que a China já tem de influenciar o resto do mundo e a criação de regras e práticas internacionais. Com o seu crescente poder económico, tecnológico e político-militar, a China mostra-nos o que poderá ser a Internet e a sociedade em rede num futuro não muito distante. Há um acontecimento marcante a reter neste contexto. Em finais de 2017 decorreu quarta Conferência Mundial da Internet, organizada pela Administração do Ciberespaço chinesa. Foi um acontecimento maior nesta área. Teve a participação de cerca de 1500 convidados internacionais, incluindo os líderes da Apple (Tim Cook) e do Google (Sundar Pichai), para além das grandes empresas chinesas como a Alibaba (Jack Ma) e a Tencent (Ma Huateng). Estiveram ainda presentes várias organizações internacionais como co-organizadores do evento, nomeadamente o Departamento dos Assuntos Económicos e Sociais das Nações Unidas. A aposta chinesa em conferências desta envergadura não é um acaso pontual. Nas suas sucessivas edições, a Conferência Mundial da Internet tem sido um palco para a defesa da soberania no ciberespaço. Para o governo chinês, o princípio da soberania estadual — que está previsto no Direito Internacional e na Carta das Nações Unidas — confere a cada Estado o direito de regular a Internet, tal como o faz sobre o seu território e população.

6. No Irão, onde recentemente a população manifestou nas ruas o seu descontentamento social e político, encontramos tendências de vigilância e controlo similares às da China. Nestas manifestações, tal como nas de 2009, o Twitter — e agora também a aplicação de conversação Telegram —, foram os principais alvos do controlo governamental sobre a circulação de informação na rede. Note-se que o Irão já tinha completado em 2016 a primeira das três fases de um plano de criação de uma "Internet nacional”, na realidade mais uma Intranet dominada pelo poder instituído na república islâmica. O objectivo é que os iranianos só tenham acesso a conteúdos, serviços e aplicativos baseados no território nacional. Naturalmente que isso reforçará a capacidade de controlo político sobre a população. Na prática, permitirá isolar, se necessário, o país do mundo exterior, controlando a liberdade de expressão e de circulação de ideias políticas. O processo mimetiza o da China, que fornece também tecnologia ao Irão para esse efeito. Para o governo chinês, trata-se de afastar a hegemonia dos EUA sobre a Internet e o monopólio ocidental sobre o uso e governação do ciberespaço. Se o modelo chinês soberanista se afirmar, caminharemos para um novo “consenso de Pequim”. A Internet irá ser um instrumento ao serviço do capitalismo autoritário e do controlo estadual dos cidadãos, com uma eficácia que nem a visão distópica de George Orwell conseguiu imaginar.

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