Como curar o desejo de apartheid?

Nas democracias liberais, o “desejo de apartheid” e o “desejo de uma comunidade sem estrangeiro” parecem encontrar conforto moral no seu passado colonial e esclavagista.

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Achille Mbembe, historiador, filósofo, professor de Ciência Política é, seguramente, um dos mais proeminentes intelectuais africanos do momento DR

Achille Mbembe, historiador, filósofo, professor de Ciência Política é, seguramente, um dos mais proeminentes intelectuais africanos do momento.

De uma prodigiosa capacidade para pôr em diálogo quase todas as Ciências Sociais, fâ-lo no quadro de uma disputa epistemológica que procura redefinir o lugar e o papel do processo histórico colonial na contemporaneidade das sociedades colonizadas e colonizadoras. Este esforço clama por uma ruptura definitiva com a continuidade histórica que ainda impregna a relação do império ocidental com o resto do mundo.

Mbembe escreve com admirável fluidez, versatilidade e densidade intelectual. No seu último livro — Politicas de Inimizade, editado pela Antígona em 2017 e magistralmente traduzido por Marta Lança —, optou por uma cadência descontínua e eruptiva através de “esboços, capítulos paralelos, traços mais ou menos descontínuos, jogos complexos, gestos impulsivos e apressados e, até, ligeiros movimentos de retirada seguidos por reversões abruptas.” (p7)

Porém, não segue por atalhos para dizer ao que vai e, apesar da complexidade do(s) tema(s) e da cadência entrelaçada do ensaio, deixa evidente, logo no primeiro parágrafo, que “o objecto deste livro é de contribuir, a partir de África, […] para uma crítica do nosso tempo — um tempo de repovoamento e de globalização do mundo sob a égide do militarismo e do capital e, como derradeira consequência, um tempo que promove a saída da democracia”. (p21)

Mbembe põe claramente em causa a ideia segundo a qual a modernidade — de que as democracias ocidentais são herdeiras — seria “o momento de triunfo da razão sobre a tradição e o arbitrário” como defendeu Alain Touraine. Considera que a subjugação da razão à ideia da estratificação humana pela cor da pele (que sustentou a desumanização pela força da guerra e da dominação) foi um dos fundamentos do racismo ideológico, âncora do capitalismo que marcou indelevelmente a “estrutura negra do mundo” que vai da raça à condição social de pertença até à categoria de indesejáveis.

Este ensaio podia considerar-se o fecho de uma trilogia que começa com Sortir de La Grande Nuit, onde analisa com profundidade a problemática da descolonização numa perspectiva decolonial. Segue-se a Critica da Razão Negra, numa paródia à Critica da Razão Pura de Kant, onde se demonstra a ligação estrutural entre o conceito da modernidade e o da colonialidade, e onde Mbembe teoriza sobre o que caracteriza como a negrificação do mundo e a planetarização desta condição que, segundo ele, extravasaria as fronteiras cromáticas cristalizadas nas identidades biológicas e sociológicas dos sujeitos racializados — e em que o negro é, no fundo, todo o deserdado do mundo como todos os colonizados eram os “danados da terra”, na acepção fanoniana e cesairiana.

Termina com este novo ensaio, num diálogo transversal com intelectuais ocidentais e não ocidentais, pensadores dos subalternstudies, dos estudos pós-coloniais, dos black-studies e do black marxism que trataram a questão colonial e a relação intrínseca desta com o imperialismo, com o capitalismo e com o racismo.

Este é um diálogo que está bastante marcado por clássicos teóricos não brancos do processo colonial, como Frantz Fanon, principalmente em Os Condenados da Terra, Paul Gilroy, nomeadamente com Atlântico Negro. Modernidade e Dupla consciência, ou Aimé Césaire, no seu Discurso sobre o Colonialismo.

Nas duas anteriores publicações desta trilogia (Sortir De La Grande Nuit e Critica da Razão Negra, editado pela Antígona em 2015, também com a tradução de Marta Lança) estão igualmente presentes várias questões aqui abordadas como a guerra e império, a desumanização como instrumento do processo de ocupação territorial e acumulação primitiva de capital, a sua contribuição na fabricação do racismo, tanto como fantasia política e ideológica mortífera e quanto como mecanismo de selecção e de governo, responsável pelas maiores abjecções contra a humanidade

Mas, nas Políticas de Inimizade, a obra que nos ocupa aqui e onde Frantz Fanon está realmente omnipresente, Mbembe desenvolve uma análise mais apurada, quase molecular do racismo. Aqui as suas dimensões assumem contornos muito mais finos sob a designação de nanoracismo, cuja receita de cura terá de passar pela “farmácia de Fanon.” Estando tão ontologicamente intrincada na normatividade democrática, esta cura precisará forçosamente daquilo que ele chama de narcotherapia. Mbembe explica como o racismo — que se transmutou em “nanoracismo é tornado cultura e respiração, na sua banalidade e na sua capacidade de se infiltrar nos poros e nas veias da sociedade, numa altura de generalizada lavagem cerebral, de descerebração mecânica e de alienação de massas” (p97). Esta abordagem da ontologia ideológica do ódio mostra como o ódio e o poder se construíram em “política da inimizade”, em que “o desejo do inimigo, o desejo de apartheid (separação e enclave) e a fantasia do extermínio ocupam o lugar deste círculo encantado.” (p73).

A inimizade tornou-se num aspecto central da vida política contemporânea onde a busca do inimigo é parte integrante da vida das democracias e o racismo seu “depósito primeiro” que permite construir o inimigo. O fantasma da fronteira desemboca na política do muro e do campo, em que uma horda de pessoas é mantida à parte e fora de portas onde se erguem muros físicos e simbólicos, construindo o inimigo no direito e na lei, mas também nos fantasmas sociológicos. Assim, o político deixa de ser o espaço que “jugula a violência” física e simbólica, e a guerra a “derrota da imaginação moral”, para ser o seu motor.

A tese de Carl Schmitt de que a “discriminação do amigo e do inimigo” parece assim triunfar nas democracias liberais, onde a “guerra como o sacramento de nossa época” se banha não apenas na obsessão da fabricação do Outro mas também na necessidade do inimigo. O inimigo é, mais do que nunca, a grande obsessão que invade o planeta construindo uma sociedade da inimizade e a pulsão da separação de tudo (e de todos) que não nos é semelhante parece ter vingado como forma de relacionamento entre humanos. A ansiedade de aniquilamento alimenta essa obsessão que, ontem como hoje, se embriaga com o fantasma do extermínio e se legitima pelo poder de excepção da possibilidade de exercer a violência sobre outrém.

Uma das explicações que Mbembe encontra para esta “decomposição da democracia” é que as democracias modernas se cristalizaram como “círculos de semelhantes fechados na forma atávica do Estado-Nação”. Historicamente, a ordem democrática liberal está inscrita num logro porque se ancora na ordem da plantação (escravatura) e da colónia (o imperialismo). E, no seu próprio seio, cimentou-se a ideia de que se pode exercer uma violência política ilimitada contra os “não semelhantes”. Antes, o não-semelhante era o corpo negro na figura do Escravo, hoje é o imigrante, o árabe, o negro, o refugiado. Em substância, nas democracias liberais, o “desejo de apartheid” e o “desejo de uma comunidade sem estrangeiro” parecem encontrar conforto moral no seu passado colonial e esclavagista.

Abriu-se uma cratera nas entranhas da democracia, resultante desta obsessão colonial pelo saque, pela predação e pela propensão para a divisão, classificação, selecção, hierarquização e diferenciação dos humanos. Desta fúria a própria natureza não está poupada, daí a sugestão de Mbembe de uma alteração de paradigma democrático, a que chama “democracia do vivo”, em que cabem todos os seres vivos, humanos, animais, vegetais para que os ecossistemas que os sustentam possam ser preservados.

Se os actuais dispositivos políticos do direito e da economia estão inscritos na clausura identitária — presa na catalização das categorias do nacional e do estrangeiro, no desejo do apartheid, no clamor das pulsões fascizantes acomodados na “democracia dos semelhantes” que implica a necessidade de um inimigo — a profilaxia contra a doença da “saída da democracia” é reinventar a democracia. Recorrendo a Fanon, Mbembe sugere que contra as políticas de inimizade é urgente erguer a “democracia do em-comum.”

O conceito de “democracia do em comum” supõe que temos um só mundo e que nos pertence a todos, corpos vivos, humanos, animais, vegetais, moleculares, e que ele é incompatível com uma economia política das pulsões identitárias que conduzem ao “deleitamento, à inversão e à saída da democracia.”

Depois de Mbembe reconhecer que a Europa já não é o centro do mundo, que o projecto democrático está em perigo, que o Ocidente está enquistado, que o equilíbrio ambiental está fortemente ameaçado, que África deve ser a “sua própria força” e virar-se estrategicamente para outros parceiros para enfrentar esta nova ordem, afigura-se difícil imaginar como e com que alianças se vai concretizar tal viragem num quadro neoliberal em que os seus potenciais aliados estão inscritos numa lógica de predação económica e ambiental, como é o caso da China em África. O conceito de “humanidade planetária” de Gilroy, que Mbembe tentou sancionar neste ensaio, tem as rédeas curtas por diluir uma discussão central sobre a raça como categoria política tal como o é a classe.

Para Mbembe o desafio é desarmadilhar a lógica cíclica de destruição-reconstrução e opor à filosofia da violência uma filosofia da cura, reparadora e restituidora (no seu sentido primordial) do que foi destruído na humanidade. O nosso tempo será o da abertura, da travessia e da circulação para se constituir como um remédio contra a irrupção da fronteira enquanto mecanismo poderoso de saída da ideia de democracia. Outro enorme desafio é vencer “a vontade do apartheid” que caracteriza as sociedades pós-coloniais, numa altura em que um pouco por toda a parte forças nocturnas ressurgem como projeto político alternativo cujo horizonte é o reforço do fechamento.

O demónio colonial reconfigura-se a nível planetário numa exacerbação da clausura entre um “nós” originário e os “outros”. A histeria identitária e o “desejo de fascismo” estimulado pelos populismos, assim como a pulsão autoritária, presentes um pouco por toda a parte, representam um perigo para qualquer projecto de liberdade. Consciente disso, Mbembe propõe-se curar-nos com o homem fanoniano, que é aquele que se desembaraçou de um conjunto de complexos que diminuem as suas capacidades de relacionamento com o outro. 

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