Natal, sábado e a tentação do farisaísmo

O que identifica os cristãos não são os ritos nem os lugares sagrados que frequentam, o que os identifica é seguirem Cristo.

1. No dia 21 de Dezembro, na apresentação de votos natalícios da Cúria romana, o Papa Francisco fez um discurso veemente e até severo. Falando sobre os serviços da Cúria que se dedicam às relações com o mundo exterior, foi especialmente duro para com os destinatários do discurso. Começou por fazer a denúncia do risco de fechamento da Igreja sobre si própria, evocando mesmo o conceito de “auto-referencialidade”. Foi mais longe e visou aqueles que constituem obstáculo à realização de reformas, que vivem dos grupúsculos e das intrigas de corte, que se arvoram em vítimas e até que traem a confiança neles depositada. Mais uma vez, o Papa Francisco apontou para uma Igreja aberta ao mundo e que nele esteja ao serviço dos valores da pessoa.  

Por razões que não vêm ao caso, neste Natal revisitei um texto que escrevi, por volta de Junho, sobre a passagem do Evangelho de Mateus relativa à observância do Sábado (Mt 12, 1-13). Passagem, aliás, sobejamente conhecida e que tem correspondência em narrações nos outros dois Evangelhos sinópticos de Marcos e de Lucas (Mc. 3, 23-28 e Lc 6, 1-11). As diferenças de texto são belíssimas e põem em evidência a riqueza de perspectivas que a personalidade de Jesus suscita, mas o seu sentido é unívoco: a substância está acima da forma, a pessoa tem supremacia sobre o rito, o próximo prevalece sobre a instituição.

Diante da mensagem de Francisco e tendo tropeçado nessa breve reflexão sobre aquela dúzia de versículos de Mateus, talvez esteja aqui também um ângulo adicional para olhar o espírito do Natal.

2. Normalmente, alude-se a esta passagem com uma formulação de Marcos que, por sinal, não se encontra no texto de Mateus: “O Sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado” (Mc 2, 27). Mas a narração de Mateus tem vários incisos, verdadeiramente fundamentais, que vão muito para lá do questionamento do rito. Dois deles merecem seguramente atenção.

Primeiro: “E se compreendêsseis o que significa: prefiro a misericórdia ao sacrifício, não teríeis condenado os que não têm culpa” (Mt 12, 7). “Prefiro a misericórdia ao sacrifício” são três palavras de Jesus — que cita o profeta Oseias — que resumem toda a sua mensagem. Jesus, que se dispôs a fazer o maior dos sacrifícios, diz sem subterfúgios: “Prefiro a misericórdia ao sacrifício.” Só esta frase, porque sintetiza com tanta simplicidade o ensinamento de Jesus, já justificaria a atenção que concita esta passagem.

3. Segundo: “E nunca lestes na Lei que, ao Sábado, os sacerdotes no Templo violam o Sábado e ficam sem culpa? Ora, eu digo-vos que aqui está Quem é maior que o Templo” (Mt. 12, 5-6). Jesus fala de Si e diz que Ele próprio é maior que o templo. Este dito lembra imediatamente a afirmação de Jesus, descrita pelos evangelistas: “destruí este Templo e eu o reconstruirei em três dias” (Mt 26, 61; Mt 27, 40; Mc 14, 58; Mc 15, 29; Jo 2, 19-20). O templo de Jerusalém demorara 46 anos a construir, Jesus afirma-se capaz de o reerguer em três dias. Ora, como esclarece João, Jesus afinal falava de Si (Jo 2, 21): Ele era o templo, seria destruído pela crucificação e ressuscitaria ao 3.º dia.

Qual a importância desta assunção de Jesus, note-se, não como sacerdote, mas sim como templo? Ou como “algo” ainda maior que o templo? Esta comparação marca uma diferença essencial entre o cristianismo e outras religiões, no caso, a judaica. Ser cristão não é aderir a uma doutrina, a uma Lei, a um corpo de princípios, de ritos e de práticas. Ser cristão é aderir a uma pessoa e essa pessoa é Jesus. O que identifica os cristãos não são os ritos nem os lugares sagrados que frequentam, o que os identifica é seguirem Cristo. O templo dos cristãos não é a “Igreja-instituição” com a sua hierarquia, a sua cúria, a sua doutrina, as suas regras. O templo dos cristãos não são também as “igrejas-edifícios”, os sucedâneos de sinagogas ou mesquitas. Não. O templo dos cristãos é Jesus. Ser cristão é aderir a uma pessoa; Jesus é, pois, neste preciso sentido, o templo. E porque ser cristão é aderir a essa relação pessoal, a essa relação íntima, pode talvez dar-se ainda um passo mais. Cristo é o templo dos cristãos e estes são os templos ou o templo de Cristo. Com efeito, foi Jesus quem disse “Pois onde estiverem reunidos em Meu nome dois ou três, Eu estou no meio deles” (Mt. 18, 20). As igrejas são templos de Cristo, apenas porque e quando nelas alguém se reúne em Seu nome. O templo não é o edifício, o templo são as pessoas. Porque Cristo é templo, os humanos, que são a Sua Imagem e a Sua semelhança, estão chamados a ser também os Seus templos.  

4. Deixando de lado estes dois incisos, voltemos ao Sábado e ao ensinamento que deixa Jesus. Todos sabem o que pretende Jesus: não há ritual nem preceito religioso que prevaleça sobre o amor e sobre a prática do bem. Se sou muçulmano, devo guardar a sexta, se sou judeu, o Sábado, se sou cristão, o Domingo. Mas se o meu irmão ou até a minha ovelha precisar de mim, não há nem sexta, nem Sábado nem Domingo. Como escrevem os evangelistas: “O Filho do Homem até do Sábado é Senhor” (Mt 12, 8; Mc 2, 28; Lc 6, 5). E já agora uma achega que não é menor, a tradução Filho do Homem não é exacta: em bom rigor, deveria dizer-se Filho do Humano ou Filho da Humanidade. Como esclarece Frederico Lourenço, no original grego é usada a palavra “antropos” que significa “humano” ou “ser humano” e não “andros” que, essa sim, designa homem no sentido de “homem-varão”. Jesus é o Filho da Humanidade, não o filho do Homem; de resto, é muito mais belo e justo tratar Jesus por Filho da Humanidade do que por Filho do Homem.

Jesus é veemente e não faz concessões: por mais que os fariseus, os fanáticos, os fundamentalistas, os beatos achem que é heresia ou blasfémia trabalhar ou curar ao Sábado, Ele responde e dá uma resposta sem hesitação: “É lícito praticar o bem ao sábado” (Mt. 12, 12).

SIM e NÃO

SIM. Presidente da República. A defesa das vítimas dos incêndios, das populações e terras afectadas é exemplar. E o que fez no Natal representou o sentimento profundo dos portugueses.

NÃO. Vladimir Putin. A proibição da candidatura do líder da oposição Alexei Navalny às presidenciais de 2018 confirma todas as suspeitas sobre a deriva ditatorial russa.

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