Viagem a Portugal com arestas a limar

Diferente, ousado e até provocador, propõe um percurso pelas várias geografias da cozinha portuguesa para chegar às técnicas apuradas e pratos sofisticados.

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Paulo Pimenta
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Anunciando uma viagem pelos sabores da cozinha tradicional portuguesa, o Anna’s é um restaurante que se propôs fazer em Aveiro algo de novo e diferente. Um percurso com pratos inspirados nas várias geografias dacozinha portuguesa e produtos com selo de origem, de vestes contemporâneas e técnica apurada.

Exigente e prometedora se anuncia, então, a viagem, que até abre caminho invocando José Saramago com uma citação da sua Viagem a Portugal logo na abertura da carta: “A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. (…) O fim de uma viagem é apenas o começo de outra”.

Pois bem, comece-se pelo lugar, num dos novos bairros da cidade, com vista para o recuperado edifício da Cerâmica Campos e vislumbre do troço final do canal do Côjo. Piso baixo sobrelevado a proporcionar sala em “U” com amplas paredes de vidro a fornecerem vistas e abundante luz natural.

Decoração contemporânea, num conceito elegante e linguagem desafiadora que combina elementos de design com bancos ao estilo de jardim em cores vivas e uma mesa redonda giratória com assentos de metal suspensos por correntes, a imitar os baloiços.

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Um cruzamento entre sofisticação e informalidade em tom de desafio e provocação, tal como a carta que anuncia modernidade e técnica com pratos tão tradicionais como caldeirada de peixe, cabidela de frango ou barriga de porco com ervilhas.

Uma lista com assinatura do chef Tiago Santos, vindo do elegante Areias do Seixo, em Torres Vedras, que acentua esse desafio provocatório e recorre a conceitos e produtos bem populares nessa viagem para a sofisticação. Exemplar a escolha das azeitonas e do azeite (Angelica), que acompanham fatias de pão do tipo alentejano, lêvedo dos Açores, de cornos e broa de milho, que compõem o couvert e não foram debitados na conta final. E também a carta de vinhos aponta a uma interessante viagem por rótulos menos conhecidos das várias regiões.

A par das propostas da carta, a lista anuncia um menu Degustação (50€) com sete momentos e possibilidade de duas harmonizações de vinhos (mais 25 ou 50€), mas que se revelaria como um primeiro percalço na viagem. Não está disponível! E porquê? O chef já não esta no restaurante e, embora a equipa de cozinha continue a executar os pratos da carta, o menu era o espelho da cozinha e do estilo de Tiago Santos.

Das entradas, convocaram-se os camarões crocantes (8€), o tártaro de atum (8€) e o bacalhau albardado (8€). Interessantes os camarões, com massa filo e um puré com caril, banal e sem alma o tártaro, cumprindo o bacalhau (sem cura) que se apresentou com puré à moda de Águeda.

A viagem prosseguiu com peixe da costa (16€), uma posta de corvina grelhada mergulhada num caldo de caldeirada com legumes. Tudo no ponto correcto de cozeduras, boa apresentação, sabores definidos e bem afinados. Competente também a execução culinária na posta de atum à

Anna’s (16€), que acompanhou com puré e um molho de soja que se não for usado com parcimónia corre o risco de mascarar a qualidade da peça de atum.

Interessante a ideia do bacalhau à Anna’s (16€), com alho negro assado e um puré trufado, mas claramente traída pela falta de qualidade do bacalhau. Sem cura, nem sabor ou textura tradicionais, e a desvirtuar o prato por completo.

Apetecia o “frango do campo à antiga”, mas a informação de se tratar antes de “peito de frango” fez recear pela qualidade das carnes do galináceo e convocar antes a “cabidela de pica no chão” (13€), que surgiu numa versão criativa mas bem pouco convincente. Carnes desossadas e montadas em cone, enquanto o arroz (empapado) apareceu aprisionado numa espécie de quenele de capa crocante (com farinha milha?) e embebida no molho de sangue avinagrado.

Também a barriga de porco com ervilhas (14€) esteve longe de deslumbrar. Carne sem suculência e sabor inexpressivo, tal como o puré de ervilhas, que nem uma bem executada espuma (de queijo?) conseguiu espevitar.

A par do peixe na caldeirada, brilharam também as sobremesas que se provaram na versão cheasecake, pudim Abade de Priscos e mil-folhas de avelã (6€ cada), mesmo que os gelados que as acolitavam se mostrassem pouco cremosos e a pender para o granizado.

Num percurso com tamanha exigência, parece claro que a meta fica em risco com a falta de timoneiro. E até o serviço, apesar do esforço e simpatia, acaba contaminado pela ausência de rumo. Para evitar a deriva, há que definir um destino. Até porque, como diz Saramago, “a viagem não acaba nunca e fim de uma viagem é apenas o começo de outra”.

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