Se é bom católico, este Natal corte no sal

A Igreja deveria empenhar-se cada vez mais na promoção da saúde pública.

Numa das suas recentes orações marianas do Angelus, o Papa Francisco referia: "O amor a Deus e ao próximo são inseparáveis e complementares. São as duas faces da mesma medalha.” No entanto, a concretização das melhores formas de Amar a Deus, de tão vasta, pode tornar-se pouco objetiva. Neste contexto, é normal que qualquer católico se questione: “Mas como posso eu Amar melhor a Deus?”

A última Encíclica do Papa Francisco, Laudato Si, desenvolve este tema de forma atual e bastante pragmática. Uma das formas de Amar a Deus é através do amor e do respeito pela Sua Criação. No parágrafo 21 da Encíclica, referindo-se aos efeitos da poluição ambiental, o Papa Francisco refere: “Muitas vezes só se adotam medidas quando já se produziram efeitos irreversíveis na saúde das pessoas.”

Por poluição entende-se a introdução pelo homem de substâncias no ambiente, provocando um efeito negativo no seu equilíbrio, causando assim danos à saúde humana, aos seres vivos e aos ecossistemas. Portanto, não há dúvidas de que fazer uma alimentação pouco saudável e com sal, açúcar e gorduras em excesso é uma forma de poluição do corpo humano, com efeitos na saúde das pessoas.

Segundo o livro do Genesis, depois de criar o mundo, Deus “viu que era bom” o resultado da sua obra. Assim se fundamenta o princípio do respeito pela criação. O planeta onde habitamos, o tempo que nos é dado a viver e o corpo humano que somos fazem parte da criação que Deus qualifica de “bela” e “boa”. Devemos então amá-los, cuidá-los e respeitá-los com igual cuidado.

Na área da promoção e defesa do Amor pelo corpo humano, a Igreja Católica tem optado por dar maior ênfase a temas como o aborto, a eutanásia, ou até mesmo o suicídio. Condena-se, por princípio, aquele que desrespeita a vida enquanto criação de Deus. Assim se justificou durante muito tempo o repúdio veemente da Igreja em relação ao suicídio. Assim se justifica, ainda hoje, o repúdio da Igreja face à eutanásia.

Se condenar quem profana a vida humana através da tentativa de suicídio ou eutanásia é legítimo, não será igualmente condenável a atitude daqueles que, diariamente, e de forma deliberada, por fazerem uma alimentação desequilibrada e por não fazerem exercício físico, destroem o seu corpo e a sua própria saúde?

A Bélgica possui uma população de aproximadamente 11,6 milhões de habitantes e, portanto, pode considerar-se semelhante a Portugal nesse âmbito. Sendo um dos países em que a eutanásia é legal, os dados mais recentes indicam que, em 2016, cerca de cinco belgas solicitaram eutanásia por dia (sendo que muitos desses pedidos nunca chegaram a ser autorizados pelas entidades competentes). Por outro lado, de acordo com o mais recente estudo do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, seis em cada dez portugueses têm, neste momento, excesso de peso (obesidade ou pré-obesidade).

A obesidade resulta de diversos fatores, dos quais se destacam os hábitos alimentares pouco saudáveis e o sedentarismo e é, por si só, fator de risco para o aparecimento de várias outras doenças potencialmente mortais, como o cancro e as doenças cardiovasculares. Morrem diariamente cerca de 100 portugueses só por doenças cardiovasculares, que poderiam, na esmagadora maioria, ter sido evitadas através de uma dieta mais saudável e mais exercício físico.

Neste contexto, poderá fazer sentido que as instituições, nomeadamente a Igreja católica, alarguem a abrangência das suas prioridades e batalhas ideológicas. Para quando uma “marcha pela vida” em que seja dado algum relevo à principal e mais recorrente forma de profanação da vida humana, os estilos de vida pouco saudáveis?

Deveria a Igreja empenhar-se cada vez mais na promoção da saúde pública. Este tema poderia perfeitamente estar no centro das prioridades da Igreja Católica nos países desenvolvidos, dado que se trata de um dos maiores problemas das sociedades contemporâneas.

Mas essa mudança, mais do que estratégica, será também uma mudança cultural. Como sabemos, mudar não é fácil e requer, normalmente, liderança forte. O Papa Francisco é o exemplo vivo de uma das formas de liderança mais efetivas: a liderança pelo exemplo.

Mas, se ainda vivemos numa sociedade em que a expressão “comi como um abade” quer dizer tudo menos comi de forma saudável, talvez a mudança deva abranger também as lideranças da Igreja Católica.

Quantos dos nossos padres fazem exercício físico regular? Não estará na altura de começarem a liderar mais pelo exemplo nessas áreas também? Ou preferimos o “Prega bem Frei Tomaz! Olha para o que ele diz mas não olhes para o que ele faz”?

Cresci a participar em campos de férias católicos. Hoje, uma das minhas atividades de voluntariado é organizar campos de férias dos Colégios Jesuítas, os Campinácios. Enquanto monitor, eu próprio me deparei recentemente com esta falta de envolvimento da Igreja e dos seus movimentos, como os Campinácios, com as questões da saúde pública.

Ao solicitar às crianças participantes do campo de férias um almoço partilhado “saudável”, fui bombardeado com comentários de estranheza e desorientação. Isto porque o habitual é que nas atividades pastorais os lanches trazidos pelas crianças para partilhar sejam à base de refrigerantes, fritos e batatas fritas. Alimentos habitualmente repletos açúcar, sal e gorduras. Se os campos de férias católicos são espaços de educação por excelência, porque não trazer para o centro das suas prioridades o ensino de estilos alimentares mais saudáveis às crianças que neles participam?

Neste contexto, muitos poderão dizer que a promoção da saúde pública é responsabilidade do Estado e não da Igreja. No entanto, esta abordagem parece-me deveras redutora. Acredito no poder do estabelecimento de verdadeiras sinergias entre as instituições.

Em 2017, pela primeira vez na história do nosso país, a fiscalidade foi colocada ao serviço da saúde pública através do imposto aplicado às bebidas excessivamente açucaradas. Esta medida foi baseada na melhor evidência científica disponível. E, como é habitual acontecer com as medidas baseadas na evidência científica (do inglês “evidence based policy”), os resultados verificados não desiludiram as expectativas.

A taxação das bebidas açucaradas, prevista na lei que aprova o Orçamento do Estado para 2017, aplicou-se aos produtores de bebidas açucaradas e demonstrou ser um sucesso. Graças a esta medida, a indústria das bebidas refrescantes preferiu reduzir o teor de açúcar das suas bebidas de forma a evitar o imposto. Só durante os primeiros 12 meses de implementação da medida (de acordo com dados oficiais da indústria), os portugueses irão ingerir menos 4250 toneladas de açúcar do que em 2016 através do consumo de refrigerantes. Os dados não deixam margem para dúvidas: o imposto aplicado às bebidas açucaradas beneficiou a sociedade e contribuiu para a consciencialização das populações.

Mas se, por um lado, o Governo foi capaz de abordar de forma tão efetiva o problema do excesso de açúcar ingerido diariamente pelos portugueses, por outro, o sal e as gorduras ingeridas em excesso continuam a ser problemas por resolver. Por isso mesmo, foi proposto o alargamento deste Imposto Especial sobre o Consumo de bebidas açucaradas à área dos alimentos (não essenciais) com excesso de sal.

O país estava preparado para dar mais um passo firme e assente em evidência científica robusta, com vista a inverter a elevada prevalência de hipertensão arterial, doenças cardiovasculares, obesidade infantil, diabetes e demais doenças crónicas. No entanto, esta medida de saúde pública foi rejeitada pela maioria dos partidos da Assembleia da República. Questiono-me se essa votação defendeu mais a criação de riqueza económica pela indústria ou a saúde enquanto Criação do Senhor.

De acordo com a evidência científica disponível nesta área, apesar de ser o instrumento mais eficaz na alteração dos hábitos alimentares dos cidadãos, a fiscalidade não pode nem deve ser a única forma. O Governo tem estado, por isso, empenhado no estabelecimento de protocolos com os meios de comunicação social para o desenvolvimento e disseminação de campanhas de literacia e sensibilização da população para as questões da alimentação saudável. Quem não ouviu falar do anúncio feito pelo “Mister Jorge Jesus” a apelar à redução do sal na alimentação?

Mas se os canais de televisão, as rádios e até as cadeias de hipermercados estão a ser chamados a assumir a sua responsabilidade social na promoção da saúde pública, fará sentido deixar a Igreja de fora? Portugal é um Estado laico. Mas essa realidade constitucional não pode nem deve impedir o Governo de ver na Igreja Católica uma aliada com quem se pode colaborar na promoção da saúde pública. Por isso, por que não um projeto conjunto em que sejam transmitidas mensagens de saúde pública, pelos padres, nas suas homilias?

É fácil perceber a gravidade de não se cuidar da saúde. Para isso basta usar a famosa parábola dos talentos. Imaginemos, ao estilo inaciano, a nossa vida, o nosso corpo, a nossa própria saúde como talentos que não são para “esconder debaixo da terra”, como faz o “servo mau e negligente”. Neste contexto, pode até induzir-se que ter hábitos de vida autolesivos é pior ainda do que nada fazer com os nossos talentos: é destruí-los pouco a pouco.

Não há época mais querida para os católicos do que o Natal. Fica então o desafio para que neste Natal, na sua responsabilidade de melhor Amar o Deus Menino, cada católico cuide melhor da Criação Dele: a saúde e o corpo de cada um.

Bem sei que o Natal não é a Quaresma nem o Advento, épocas em que pensamos mais em João Baptista, que vivia no deserto a comer gafanhotos e mel selvagem. Por isso, ainda que não caindo em exageros, por que não começar já neste Natal a comer comida mais saudável e só com o essencial?

Talvez assim iguarias da consoada tradicional passem a ser um pouco menos gulosas. Mas esta será certamente uma consoada mais católica!

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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