O machismo também se automatiza

A linguagem que o Google Translator usa não foi criada no vazio, as escolhas não surgem do nada — e também não surgem do respeito pela gramática. Surgem de uma determinada maneira de ver o mundo, de agir no mundo e sobre o mundo

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John Simitopoulos/Unsplash

O serviço Google Translate (GT) tem cerca de 500 milhões de utilizadores — ou pelo menos tinha em 2016. O Brasil era o país com maior número de utilizadores. Isso quer dizer que, para um número que é equivalente ao de todas as pessoas que vivem na União Europeia, este serviço automático é uma forma fundamental de fazer sentido de uma parte do mundo.

Quando falo de “fazer sentido do mundo”, não o quero dizer no sentido em que as pessoas usam aquele serviço como uma ferramenta que elas depois usam para perceber o mundo. Quero dizer que o GT cria uma determinada forma (linguística) de entender o mundo, e as pessoas recebem, na sua maioria, os resultados dessa forma pré-formatada de entender o mundo.

Qual o problema disso? É que, por serem automatizados, estes serviços automatizam também — naturalizam também — a forma como as pessoas que os criam entendem o mundo à sua volta. De repente, a maneira de pensar de um pequeno grupo de pessoas — a equipa de programação por detrás do GT — torna-se a forma de ver o mundo de milhões de pessoas.

Um caso flagrante disto passa-se com o turco. É que enquanto em Portugal se faz um alarido gigantesco sobre mudar o “Cartão de Cidadão” para “Cidadania”, outras línguas há (muitas até) que contemplam um género neutro nos seus pronomes, ou que só têm género neutro. E portanto não há, em turco, “a” médica ou “o” médico. A melhor tradução a fazer seria x médicx — os "xis" a substituir a forma correcta de indicar que nenhum género está a ser conotado no pronome demonstrativo. Assim, “o bir doktor” (elx é médicx) vira “ele é médico” (ênfase nos marcadores de género); mas “o tembel” (elx é preguiçosx) vira “ela é preguiçosa”.

Reforço — não existe nenhuma razão gramatical para medicina estar associado ao masculino e preguiça ao feminino. Só que um mundo em que o prestígio e a tradição mandam que a Medicina seja campo de homens (só em 2008 se atingiu paridade nesta profissão!), e em que as mulheres são vistas como menos fortes, trabalhadoras ou competentes, aqui temos um sistema automático que toca a vida de milhões de pessoas a normalizar essas mesmas estruturas e tradições.

A tecnologia, por si só, não provoca progresso nem retrocesso social. A tecnologia não existe no abstracto — existe numa sociedade, criada e moldada a partir de certas perspectivas, por certas pessoas. A linguagem que o GT usa não foi criada no vazio, as escolhas que o GT faz não surgem do nada — e também não surgem do respeito pela gramática. Surgem de uma determinada maneira de ver o mundo, de agir no mundo e sobre o mundo.

A linguagem é a forma como nós lemos e definimos o que é real, o que conta como autêntico. A linguagem estrutura o nosso cérebro, fisiologicamente, permite-nos aceder às competências que usamos actualmente para definir o que uma pessoa é, permite-nos dizer “Eu sou” — e também “Tu és”. Organizamos o mundo e a nossa experiência do mundo pela linguagem.

Num mundo machista, a linguagem é machista. Num mundo machista, a programação e a automação não são a transcendência do género, mas a mecanização do género, a reprodução algorítmica do género tornado verdade auto-evidente, dentro e fora dos sistemas linguísticos, contra a mais óbvia observação empírica, contra as próprias regras da gramática. Só que, felizmente, a linguagem também é viva, também muda. Vamos mudar a linguagem, vamos mudar o mundo que ela molda, vamos traduzir melhor a diversidade que existe no mundo.

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