A recusa da Garagem em abastardar o teatro

Display assume-se como peça de resistência da companhia dirigida por Carlos J. Pessoa. Até 3 de Dezembro, no Teatro Taborda, ao ritmo de um zapping.

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Display Marília Maia e Moura
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Display Marília Maia e Moura

Display, a 91.ª criação do Teatro da Garagem fala-nos, claro está, de um dispositivo. O dispositivo é o próprio teatro e a forma como pode ser colocado em marcha e de que forma pode ser usado. Em cena até 3 de Dezembro no Teatro Taborda, em Lisboa, de que a Garagem é companhia residente desde 2005, é uma peça em que comédia, tragédia, drama e farsa medem forças na indefinição, numa tentativa de descoberta do que este espectáculo pode, afinal, ser. Parafraseando Jorge de Sena, Carlos J. Pessoa, director da companhia e autor dos textos originais que compõem a maioria do seu percurso, fala do “teatro como reduto de espiritualidade, onde se convocam muitos pontos de vista, muitas linhas que definem o humano”.

E o humano em Display é um grupo de actores a tentar colocar de pé um espectáculo, com cenas fragmentárias que sugerem um constante zapping e uma falta crónica de atenção – cortesia da voragem da sociedade de consumo. “Vivemos às vezes no instantâneo do actual, do like do dislike, do imediato, de uma espécie de cultura facial”, diz o autor e encenador ao PÚBLICO. “E isso é redutor e perigoso. Não me interessa uma cultura facial, interessa-me mergulhar e tentar sujar-me.” Daí que, por exemplo, voem corn flakes pelo ar, que se espalham pela sala, ilustração de uma repetição de gestos quotidianos ditados pelo consumo e a que ninguém escapa. Carlos J. Pessoa não se coloca à margem, precisamente, quando fala de um adormecimento colectivo perante o conforto burguês. “Só que às vezes este conforto é extremamente desconfortável.”

E é esse conforto que se torna mobilizador quando o Teatro da Garagem faz de Display uma declaração de recusa em “abastardar o teatro”. Querendo com isto dizer que não se dispõe a “sucumbir àquele que é um pouco o discurso dominante contemporâneo – o discurso do marketing, das marcas, da empresa, do lucrativo, do rentável, sempre subordinado a valores económicos, como se as pessoas se medissem pela conta bancária ou pelo sucesso mediático que têm ou deixam de ter”. É nesse sentido que Display se afirma uma peça de resistência. Uma peça em defesa da reflexão ética daquilo que o teatro deve ser e ter.

Colocando em cena um encenador chamado Carlos Sadino (e que é, em grande parte, uma projecção do próprio autor do Teatro da Garagem) com trauma de incompreendido e que grita ordens como “Quero tudo a fazer de porco, já!”, a peça fala-se em português, inglês – “um inglês de rua, de traveller, porque todos viajamos hoje em dia” – e mandarim. É uma questão prática, tendo em conta as diversas origens dos actores, mas também consequência de uma reflexão sobre o que significa ser português neste tempo. “Ser português pode ser cada vez mais uma diluição sem que isso seja necessariamente mau numa ideia de cidadania, uma ideia anti-nacionalista”, defende o encenador. “Numa altura em que há todas estas emergências do Trump, do Brexit e do reaparecer de ideologias sectárias, a globalização é uma questão inevitável.”

Inevitável é também o aparecimento de Trump, citado naquele que é o cenário que vai sendo preparado ao longo da peça: um campo de refugiados – “let’s make this refugees camp great again”, ouve-se quase no fim – que também não escapa à invasão do mais sôfrego capitalismo, passando a ser discutido como espaço para um futuro centro comercial, com pista de gelo. “O campo de refugiados é um parque de diversões, uma mistura atroz de Auschwitz com Disneyland”, descreve Carlos J. Pessoa. Uma imagem-choque apontada a uma contemporaneidade que tudo banaliza.

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