O novo factor chinês

Desde o ano negro de crise de 2009 e até o final de 2016, a economia da Zona Euro, entre avanços e recuos, cresceu cumulativamente 1,8%. No mesmo período a economia chinesa cresceu 87,6%..

É quase assustador constatar como a União Europeia ingenuamente acredita que um sistemático conjunto de faustosas declarações de auto-elogio e de faraónicos tratados consegue “estabelecer” uma espécie de superioridade conceptual, económica e política sobre o mundo. O planeta visto de determinados edifícios de Bruxelas parece eurocêntrico e ansioso pelas superiormente esclarecidas orientações que daqueles edifícios emanam para iluminar um mundo acéfalo e primitivo. Mas o mundo real é radicalmente diferente. E esta crescente disfunção entre euro-fanáticos e as realidades globais contemporâneas contribui, por exemplo, para que a Zona Euro seja, nos anos recentes, a grande região do mundo que estagna economicamente enquanto quase todo o mundo explode em vitalidade e em vibrante crescimento.

A incapacidade de humildemente se reconhecerem as graves vulnerabilidades e falhas criadas na Europa impede que se corrija o que está errado. Ainda mais grave, a UE recusa enfrentar as realidades que a embaraçam e opta por uma “fuga em frente” triunfalista, em negação das realidades. Começa a configurar-se um quadro de perigosos danos para o nosso futuro.

Entre as inúmeras novas realidades que os europeus têm uma imensa dificuldade em reconhecer conta-se a afirmação global da China, o seu crescimento económico continuado e a sua estratégia internacional que, estando longe de ser perfeita, é incomparavelmente mais potente e articulada que a da União Europeia.

Num passado recente a China pobre carecia de capacidade financeira para o seu crescimento e a sua modernização. Mas três décadas de crescimento económico fortíssimo já a transformaram na maior economia do mundo em termos reais (ppp) e a segunda em termos nominais prestes a ultrapassar os Estados Unidos. No passado a China sem capacidade financeira necessitava do investimento europeu. Agora a China tem um poder e uma liquidez com que a Europa não consegue rivalizar, e no ano passado a China investiu na Europa mil milhões de dólares por semana, o triplo do que toda a Europa investiu na China.

Os europeus, em negação, rapidamente sublinham com desprezo que a economia da China está a desacelerar. Todavia, neste ano, 2017, a economia chinesa crescerá 6,8%, enquanto os europeus ficariam em êxtase e em festa se a economia europeia crescesse a metade desse ritmo. Dentro de 5 anos provavelmente a economia chinesa estará a crescer ainda a um ritmo quádruplo do da Zona Euro e quíntuplo do de Portugal. Desde o ano negro de crise de 2009 e até o final de 2016, a economia da  Zona Euro, entre avanços e recuos, cresceu cumulativamente 1,8%. No mesmo período a economia chinesa cresceu 87,6%. A China é um país entre cerca de 200 existentes no mundo mas representou quase 1/3 do crescimento de toda a economia mundial.

Só em reservas em moeda estrangeira a China possui (usando a terminologia numérica anglo-saxónica) mais de 3 triliões de dólares, um valor avassalador. A China tem ainda muito que progredir. O seu PIB per capita ainda é reduzido, o que mostra que esta explosão económica ainda representa apenas o início de algo que muda já o mundo e o mudará muito mais. Ainda existem pobres na China mas todos sobem enormemente em rendimento em cada ano que passa, enquanto os europeus perdem qualidade de vida e capacidade financeira. Na China já foram retirados da pobreza 700 milhões de pessoas, o que nunca na história da humanidade ocorrera. E a classe média chinesa é já a maior do mundo, com um poder de compra que os portugueses não possuem.

Os chineses em rápido crescimento económico geraram poluição mas aprendem e invertem a sua trajetória enquanto os teóricos ocidentais fazem bem menos. A China é já o maior investidor em energias limpas e o líder tecnológico mundial em várias dessas novas energias. E enquanto o Ocidente ainda imagina uma China de mão-de-obra intensiva e barata, desde 2014 a China é já o maior investidor mundial em robots industriais. Terá a generalidade dos europeus alguma vaga noção do que a China é já, e do que será dentro de 10 ou 30 anos? Ou alguma noção lúcida do que está a suceder nas economias emergentes e em desenvolvimento?

A China acaba de apresentar ao mundo o seu plano de desenvolvimento para os próximos 5 anos. Em Portugal perdem-se eternidades de discussão parcialmente estéril e repetida, em questões como a “reforma” da floresta, uma trica microscópica entre figuras políticas ou o orçamento de um simples ano. Aqui, custa compreender que um país o faça para 5 anos. Mas, pior ainda, na Europa não se compreende que para os chineses um prazo de 5 anos é, simplesmente, o seu curto-prazo, porque verdadeiramente planeiam o seu futuro a 30, 50, mesmo 100 anos. Existe uma consciência estratégica dos objetivos a muito longo prazo, e o curto prazo é um metódico passo inteligente para lá chegar.

A iniciativa chinesa do Belt and Road, a nova Rota da Seda do séc. XXI, catapultará o poder da China e mudará o mundo das próximas décadas de uma forma que a generalidade dos políticos, empresários e académicos portugueses não vislumbra. Quando começarem (verdadeiramente) a compreender será tarde em imensos aspetos. O vazio criado pelo enfraquecimento norte-americano com Donald Trump e a distração narcisista dos europeus consigo próprios amplificarão a potente projeção da influência chinesa no mundo. Com o seu mérito e o demérito da Europa e dos Estados Unidos. O abandono norte-americano da Parceria Transpacífico ajudará o poder chinês na Bacia do Pacífico e na Ásia Oriental. A debilidade económica e estratégica da Europa facilitará a nova malha de expansão de rotas e infra-estruturas chinesas na Eurásia. O gigantesco volume de apoio financeiro a países em desenvolvimento cria neles uma presença influente da China enquanto do Ocidente se esbate.

A verdade é que, apesar dos seus erros e dos seus defeitos, a China tem, por seu mérito, uma consistência estratégica a muito longo prazo que nós nem por sombras possuímos. Compreendo que reconhecer estas realidades horrorize os responsáveis europeus, num mundo que durante séculos foi eurocêntrico mas que já não o é. O amadorismo na política nacional e europeia não ajuda.

Vivermos em negação das realidades, em recusa dos nossos erros e das nossas miopias estratégicas apenas piorará o nosso futuro e o dos nossos filhos e netos. Neste assunto como em muitos outros.

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