A pena de morte como regresso ao estado selvagem

Nenhuma concepção personalista do Homem poderá jamais pactuar com a pena de morte.

“A Pessoa é a medida e o fim de toda a actividade humana”
Francisco Sá Carneiro

A pena de morte para crimes civis foi abolida em Portugal pela Reforma Penal de 1867, ou seja, há precisamente 150 anos. É certo que, já 15 anos antes, o Acto Adicional de 1852, que alterara a Carta Constitucional de 1826, suprimira a pena de morte para os chamados crimes políticos.

Convém lembrar que, nesse tempo, a pena de morte já não era aplicada no nosso país há algumas décadas. Com efeito, a última execução de um homem por crimes não militares ocorrera em 1846, e de uma mulher em 1772.

Em 1867, o Governo de então, presidido pelo regenerador Joaquim António de Aguiar, fizera a mais vibrante defesa daquela medida de tão largo alcance político, social e mesmo civilizacional, através do ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, Augusto Barjona de Freitas.

Em defesa da supressão da pena de morte nos crimes civis, argumentava o referido membro do chamado Governo da Fusão (que juntava os partidos regenerador e histórico) que “Largo tem decorrido o pleito disputado entre os defensores das garantias sociaes, que n’aquella extrema e sanguenta punição julgam ver assegurada a ordem e defendida a sociedade, e os zelosos propugnadores da inviolabilidade da vida humana, que amaldiçoam como desnecessária e criminosa a pena que paga o sangue com sangue, que mata mas não corrige, que vinga mas não melhora, e que usurpando a Deus as prerrogativas da vida e fechando a porta ao arrependimento, apaga no coração do condenado toda a esperança de redempção, e oppõe á falibilidade da justiça humana as trevas de uma punição irreparável”.

As palavras do ministro inspiravam-se, não só no preceito cristão de “não matarás”, como nos princípios do Direito Natural, filiando-se igualmente no movimento liberal e humanista triunfante no século XIX e que sucedera ao pensamento iluminista mais progressivo do século anterior, o qual encontrara em Cesare Baccaria um percursor do Direito Penal moderno. Para Baccaria, a pena de morte não era “nem útil nem necessária”, asserção demonstrada no facto de aquela nem sequer ter um efeito preventivo na ocorrência de novos crimes.

Na altura, o notável escritor Victor Hugo, também activista pelos direitos humanos, escreveria com júbilo: “Está pois a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande história. [...] Felicito a vossa nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Desfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa imitará Portugal. Morte à morte! Guerra à guerra! Viva a vida! Ódio ao ódio. A liberdade é uma cidade imensa da qual todos somos concidadãos.”

Desde então foram cada vez mais os países que seguiram o exemplo português, abolindo igualmente nos seus ordenamentos jurídico-penais aquela sanção tão dura e tão cruel, mas também tão flagrantemente violadora da dignidade da pessoa humana e dos próprios direitos fundamentais.

Actualmente, em nenhum Estado-membro da União Europeia se consagra a pena de morte, sendo de 170 o número de países que aboliram a pena de morte ou já não a praticam, segundo um relatório do secretário-geral das Nações Unidas, apresentado ao Conselho de Direitos Humanos em 2016.

Porquê, então, ressuscitar essa questão morta no nosso país? Com que propósito poderá algum português pretender uma tal regressão civilizacional? A motivação não poderá ser, seguramente, a de melhor ou mais eficazmente combater a criminalidade.

Na verdade, segundo o último estudo Global Peace Index, relativo ao ano de 2016, Portugal é o terceiro país mais pacífico do mundo, uma subida de dois lugares relativamente ao ano anterior. Igualmente o último Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) disponível, referente também ao ano de 2016, evidencia que o número de crimes praticados em Portugal no ano passado continuou a descer, designadamente no que se refere a criminalidade violenta e grave, a qual diminuiu 11,6% face a 2015, prosseguindo a tendência decrescente registada nas últimas décadas.

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Aliás, o mesmo relatório dá ainda conta de terem ocorrido no nosso país 76 homicídios voluntários consumados no ano de 2016, menos 26 do que no ano anterior, em que ocorreram 102, numa tendência também claramente decrescente relativamente aos últimos anos, como se pode observar no gráfico.

A razão não pode pois estar num alegado aumento da criminalidade violenta, designadamente contra as pessoas, já que aquela, pelo contrário, de há muito vem diminuindo no nosso país. A comprová-lo está o facto de em 1861 terem sido cometidos 215 homicídios num conjunto de 4052 crimes contra as pessoas, enquanto em 2016 foram consumados 76 homicídios num contexto de 80.929 crimes contra as pessoas, o que revela que a proporção dos homicídios desceu, na categoria referida, de 5,3% para uns residuais 0,09%!

Outro exemplo igualmente esclarecedor pode ser encontrado na proporção dos homicídios no conjunto da população portuguesa. Com efeito, se esta se situava em 4,2 milhões de pessoas em 1864 (I Recenseamento Geral da População de Portugal), em 2011 ascendia 10,6 milhões (Censos 2011). Enquanto isso, os crimes de homicídio desceram dos referidos 215 para 76, donde resulta que em 1861, quando havia entre nós a pena de morte, foram cometidos 5,1 homicídios por 100 mil habitantes, enquanto em 2016 essa taxa desceu para 0,7 homicídios por 100 mil habitantes...

Não é pois a criminalidade que pode justificar a defesa de tão aberrante regressão. Mais provavelmente o será a falta de princípios cristãos e humanistas e também a pobreza moral de quem não compreende que a aceitação da pena de morte compromete não só a dignidade humana que qualquer pessoa originariamente detém, como não entende o princípio ético básico segundo o qual o Estado não tem o direito a dispor arbitrariamente da vida dos cidadãos, algo que não deveria merecer hoje contestação e seguramente não a poderá merecer em qualquer país civilizado.

E cito novamente Barjona de Freitas, quando este lembrava que “A punição que no estado selvagem tinha por princípio a vingança particular, o talião legal na civilização do oriente, que na civilização germânica se prestava ao resgate das penas por multas, que se inspirou da escola estóica no mundo greco-romano, tomou nos tempos modernos a feição que lhe imprimiu a ideia da caridade cristã, pela qual se compreende, se justifica e se exige que o delinquente, ao fecharem-se sobre ele as portas do carcere, possa ainda volver reabilitado à sociedade, regenerado pelo arrependimento e remido pelo castigo.”

Como social-democrata e católico rejeito de forma clara, definitiva e categórica a pena de morte, lamentando profundamente que possam existir entre nós pessoas que se intitulem de democratas e não tenham qualquer pejo em desrespeitar de forma tão revoltante a inviolabilidade da vida humana.

Nenhuma concepção personalista do Homem poderá jamais pactuar com a pena de morte, seja esta para que crime for e em qualquer que seja a circunstância. Defender a pena de morte é fazer a apologia do regresso ao estado selvagem. Hoje como em 1867.

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