Reflexões constitucionais para uma regulação integrada: conteúdos, comunicações e concorrência

A verdadeira questão terá de ser equacionada pelo legislador numa perspetiva de regulação integrada de redes, conteúdos e propriedade.

A regulação dos media encontra-se dispersa por três entidades, com naturezas próximas mas distintas, que prosseguem atribuições, em alguns casos, orientadas por regras ou interesses contraditórios: ERC, Anacom e Autoridade da Concorrência. As novas tecnologias, que povoam o mundo digital, vieram agravar o arcaísmo dessa tripartição, tal como a lei atualmente a desenha.

Por um lado, no âmbito regulatório tradicional dos media e das telecomunicações, as constantes sobreposições de competências são gritantes e incompreensíveis, gerando autofagia regulatória. Por outro lado, apesar do nosso ordenamento jurídico-constitucional ferir de morte uma decisão da Autoridade da Concorrência sobre uma operação de concentração de empresas mediáticas sem o controlo dos seus efeitos no pluralismo, avultam deficiências e omissões de articulação institucional que são, ao mesmo tempo, nefastas para o mercado e sintomáticas de uma certa anorexia constitucional. Vamos por partes.

1. Atentemos na estafada (mas até agora inconsequente) constatação de que uma separação regulatória fundada na distinção entre redes/plataformas ou conteúdos é obsoleta. Não apenas os diversos formatos e atividades vão ganhando cada vez mais aspetos comuns, como a influência da regulação das telecomunicações nos conteúdos é, cada vez mais, incontornável. Atualmente, a mesma rede ou infraestrutura pode ter diferentes finalidades, dado que o espectro, o cabo ou o satélite, podem ser usados como meios de comunicação ou como meios de difusão de dados. O futuro das redes de comunicações eletrónicas passa, também, pela diversificação da sua utilidade como plataformas de difusão de conteúdos, em especial no que se refere à prestação de serviços de radiodifusão televisiva e serviços audiovisuais e afins. Nessa medida, a regulação das comunicações eletrónicas encontra-se impregnada dos bens e valores prosseguidos pela regulação da comunicação social e não pode ser alheia à mesma. Dois exemplos:

i) A crescente influência da regulação das telecomunicações nos conteúdos, por exemplo, na gestão do espectro liberto ou disponível para afetação de serviços de programas televisivos. As posições assumidas pelas duas reguladoras nesta matéria têm sido contraditórias ou mesmo incompatíveis;

ii) Acresce uma, desnecessária e incompreensível, duplicação de intervenções, no contexto do atual modelo de regulação bicéfala do audiovisual, nos concursos públicos para a atribuição de licenças audiovisuais, tornando os procedimentos complexos quanto à sua instrução e decisões finais.

2. O modelo exposto é suscetível de gerar decisões incongruentes e contraditórias, que estimulam a ineficácia e desperdícios regulatórios — autofagia regulatória —, ditada pelos interesses que os regulados envolvidos pretendem que sejam prevalecentes. Cabe-lhes, em última instância, a opção final sobre a decisão regulatória a acatar. Isto gera uma ineficácia dos comandos constitucionais e consequente paralisia ou anorexia constitucional. Dois casos reais, paradigmáticos:

a) O processo que culminou com a atribuição à PTC – PT Comunicações, SA, pelos diferentes reguladores, no âmbito das respetivas competências, dos títulos habilitadores de operador de distribuição e dos direitos de utilização de frequências, no âmbito do Concurso Público da Televisão Digital Terrestre. Com efeito, competia ao (então) ICP – Anacom a atribuição de direitos de utilização de frequências, referentes à componente paga da TDT, e à ERC a atribuição de uma licença de operador de distribuição. Uma vez ganho o concurso público, também relativo a estes cinco direitos de utilização de frequência, a PTC decidiu, contudo, requerer a revogação desses títulos, referentes à componente paga da TDT e a restituição da caução, em ofícios dirigidos, em simultâneo, às duas entidades reguladoras. Obteve respostas contraditórias, tendo prevalecido a que lhe era mais favorável;

b) O segundo exemplo extrai-se, sem dificuldade, da leitura das posições contraditórias assumidas pelos dois reguladores, no mesmo texto que serviu de base à mais recente consulta pública conjunta sobre o alargamento da oferta da TDT.

3. A necessidade de uma regulação integrada, capaz de encontrar um equilíbrio entre mercados eventualmente colidentes, torna-se ainda mais evidente no instituto do must carry: compete à ERC proceder à especificação dos serviços de programas de rádio e de televisão, e de serviços destes complementares, que deverão constituir objeto de obrigações de transporte (must carry) e de entrega (must deliver, ou must offer), em redes de comunicações eletrónicas. Compete, por sua vez, à Anacom, enquanto regulador sectorial das infraestruturas técnicas de distribuição do sinal televisivo, o papel de garante das especificações realizadas pela ERC, devendo-as impor aos seus regulados: a ERC define as obrigações de transporte e a Anacom impõe-nas no ato de licenciamento (ou de autorização). O que tem acontecido? Na prática, a Anacom tem ignorado a ERC.

4. A deficiente articulação entre os reguladores dos media e da concorrência para a garantia do pluralismo gera desestabilização regulatória e conflitos negativos de competências, constitucionalmente fatais. É, seguramente, inconstitucional a interpretação de normas atinentes ao Regime Jurídico da Concorrência no sentido de permitir que a Autoridade da Concorrência possa decidir sobre um pedido de apreciação de uma operação de concentração, que envolva empresas mediáticas, sem que tenha sido emitido o parecer do regulador competente, relativamente ao controlo do pluralismo. Mesmo as operações de concentração de empresas do setor da comunicação social, com dimensão comunitária, sujeitas à regra do balcão único, em matéria de análise jusconcorrencial, devem ser escrutinadas pelo regulador constitucionalmente competente, em matéria de análise do pluralismo. Uma exigência que, não obstante seja reconhecida e assumida pelo próprio regulamento da UE aplicável em contexto concorrencial, tem sido desvalorizada pela nossa praxis regulatória.

5. Os argumentos expostos, somados à rejeição de um conceito formal de pluralismo no atual mercado digital, reforçam a relevância constitucional de uma regulação integrada. Nenhuma análise de pluralismo poderá lograr ser realista se não atentar no crescente aumento de canais de comunicação e de acesso aos media, propiciado pelo ciberespaço.

Por conseguinte, no nosso ordenamento jurídico-constitucional, centrar a discussão de uma eventual fusão institucional de certas entidades reguladoras, com base no argumento do desajustamento da separação entre redes e conteúdos, é pobre. E enganador. A verdadeira questão terá de ser equacionada pelo legislador, numa perspetiva substancial de regulação integrada de redes, conteúdos e propriedade. Isto implica, reflexamente, uma visão especializada mas, ao mesmo tempo, compreensiva e transversal dos mercados relevantes e suas especificidades, para efeitos de defesa da concorrência e da garantia do pluralismo. Um modelo regulatório que garanta uma visão integrada das comunicações, conteúdos e concorrência, independentemente, por ora, da respetiva solução institucional, necessariamente integrada na Administração Independente. O modelo proposto não carece de alteração da Constituição, uma vez que o legislador de revisão constitucional desconstitucionalizou o órgão regulador, limitando-se a estabelecer conexões necessárias entre a reserva constitucional material que desenha no artigo 39.º da CRP e uma reserva constitucional de administração independente.

6. Por último, antecipando críticas, cabe ter consciência das vantagens e desvantagens da existência de conflitos positivos de competências entre os reguladores — o designado fenómeno da concorrência entre reguladores ou descentralização da regulação. Por um lado, acentua-se a concorrência como fator que reforça a independência, na medida em que será pouco provável que vários reguladores possam ser capturados, ao mesmo tempo e pelos mesmos interesses. Contudo, é plausível contrapor que, antes pelo contrário, a centralização pode ser uma alternativa mais efetiva para o combate à captura de tantos reguladores sectoriais.

Sem prejuízo da necessidade de um diagnóstico análogo ao presente, sobre as relações entre a Anacom e a Autoridade da Concorrência, cumpre, desde já, questionar: não será o preço a pagar pelas vantagens da descentralização — a rutura da unidade das normas reguladoras — excessivo? Vivemos uma oportunidade única de levar a sério a resposta que dermos a esta questão.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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