Carta a um refugiado

Ainda hoje é difícil descrever a revolta que senti quando estive em Lesbos. Lembro-me como, quando me contaste a tua história, iniciavas as tuas frases com a expressão “imagina que”. Confesso-te que nunca consegui fazer esse exercício

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Yiannis Kourtoglou/Reuters

Amigo,

Espero, sinceramente, que esta carta já não te encontre no mesmo lugar onde trocámos um último abraço e me despedi de ti com a frase “Até breve, mas não aqui”.

Ainda hoje, após dois meses, me é difícil descrever a revolta que senti quando estive em Lesbos. Lembro-me como, quando me contaste a tua história, iniciavas as tuas frases com a expressão “imagina que”. Confesso-te, agora, que nunca consegui fazer esse exercício, nem na altura em que conversámos, nem todo este tempo depois. Parece tudo demasiado distante, demasiado surreal. Pensar que, de um momento para o outro, a nossa vida pode mudar e tudo o que até então tínhamos construído fica à mercê de uma viagem de barco que coloca em risco a vida de uma família inteira.

Não consigo imaginar porque, por aleatoriedade da vida, tive a “sorte” de nascer num país seguro, onde não tenho de fugir ao ouvir som de uma metralhadora e só conheci a guerra através das histórias do meu avó, dos livros, dos filmes ou da televisão.

E sim, talvez por ser demasiado distante ainda tantas pessoas olhem para o lado quando todos os dias lemos (ou líamos) notícias de dezenas de novas pessoas que chegam diariamente a Lesbos.

Escrevo-te cumprindo a promessa que te fiz, de que não me calaria e ia falar do que vi e senti. Como dizes, por muito pouco que sinta que possa ter feito enquanto estive aí, tamanha é a dimensão da situação, pelo menos já sou mais um que viu, esteve presente e agora tem a missão de, na sua comunidade, relatar o que viveu, mas também sou mais um que se junta à carta que 19 organizações não-governamentais enviaram ao primeiro-ministro da Grécia.

Entre outras coisas, a carta alerta para o facto de, só em Lesbos, mais de 5400 pessoas viverem em tendas e contentores sobrelotados, com acesso desadequado a abrigo, comida, água, meios sanitários, cuidados médicos ou protecção.

Lembro-me do orgulho e no brilho nos olhos com que falavas da tua casa, que tinhas remodelado recentemente para proporcionares uma melhor infância aos teus filhos e de como ainda guardas o sonho de um dia voltares ao teu país e a reconstruíres. Sentimento que contrastava com o vazio que se sentia dentro daquelas quatro paredes que compunham o contentor, onde habitavam quatro camas e pouco mais.

Sei que os próximos meses vão ser duros, por causa das fracas condições do campo e do frio que está a chegar. Onde quer que estejas, torço para que não voltes a passar pelas dificuldades do Inverno passado e que se encontrem respostas concretas, uma vez que forçar milhares a permanecer em condições que violam os seus direitos, perigosas para o seu bem-estar, saúde e dignidade, não pode ser justificável.

PS: Agora é a tua vez de cumprires a promessa. Até breve, numa outra parte do Mundo.

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