A dança de Eun-Me Ahn está cheia de espaços em branco

Fenómeno da dança sul-coreana, chegou à Europa pela mão de Pina Bausch. A sua dança de liberdade mostra-se em Portugal pela primeira vez esta sexta-feira, no Rivoli, Porto, graças a Dancing Grandmothers.

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Eun-Me Ahn não faz qualquer esforço para se recordar do nome do crítico que lhe cunhou o epíteto “Pina Bausch da Ásia”. Fala disso, aliás, como se fosse uma virose qualquer que apanhou e da qual teve e tem de se livrar regularmente. E mesmo frisando que está muito pouco interessada em descrever a sua linguagem coreográfica, desvaloriza aquilo que sempre lhe pareceu uma preguiçosa forma de olhar com uma lupa para a sua biografia e daí extrair uma descrição sumária que, na verdade, pouco diz. Pina Bausch, atira entre risos, foi sua inimiga. Na verdade, não tanto especificamente sua quanto de toda a sua geração (lá iremos).

A vida de Eun-Me Ahn cruzou-se com a da revolucionária criadora alemã quando Bausch foi convidada, em 2000, para inaugurar o LG Arts Center em Seul, com a apresentação de uma das suas peças mais emblemáticas, Nelken. Como havia necessidade de encontrar um guia para Bausch, Eun-Me foi contactada para acompanhar a alemã durante a sua passagem pela Coreia do Sul. “Só a conhecia do palco, dos livros e da internet”, conta a coreógrafa que se estreia em Portugal esta sexta-feira no Teatro Rivoli, Porto. “Fiquei muito tímida porque ela era uma pioneira da dança contemporânea e foi a influência dela que nos ofereceu a possibilidade de nos expressarmos de uma forma mais livre, trouxe-nos a vida comum para o palco.” O tempo que as duas passaram juntas nessa ocasião acabou por forjar uma amizade que levaria Eun-Me a visitar várias vezes Bausch em Wuppertal e a encontrar nas salas alemãs a sua porta de entrada na Europa.

Porquê, então, qualquer antagonismo relativamente a Pina Bausch? Eun-Me Ahn acredita que a obra da autora de Café Müller foi de tal forma marcante e influente que deu origem a “um período muito difícil para a geração que se seguiu”, uma vez que se tornou quase inevitável integrar a linguagem de Bausch, mas também desencadeou um trauma porque por todo o lado, do guarda-roupa, aos movimentos e aos objectos levados para cena, tudo parecia carregar a sua marca e a sua sombra. “Ainda bem que não tinha DVD nem internet na altura em que cresci e comecei a ser coreógrafa”, desabafa Eun-Me, 54 anos, aliviada por ter podido desenvolver a sua linguagem, ancorada na tradição sul-coreana, antes de se acerca de uma linguagem com um ascendente tão inibidor sobre novos criadores.

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Eun-Me Ahn não faz esforço para se recordar do nome do crítico que lhe cunhou o epíteto “Pina Bausch da Ásia”. Fala disso, aliás, como uma virose que apanhou e da qual teve e tem de se livrar regularmente OkSanghoon

Sem DVD nem internet, Eun-Me Ahn recua até à sua infância para identificar, sem grande esforço, aquelas que terão sido as primeiras matrizes para a sua criação de movimento. Se no pai tinha “um homem calado, do sul — onde os homens são educados para serem fortes e de poucas falas” —, na mãe encontrava um “ser luminoso, com a energia de um pássaro a voar, que dançava maravilhosamente e parecia que o fazia sobre brasas”. “Mas ela nunca se expressava, porque era de uma geração mais velha e nunca se pôde dedicar à dança, nem sequer lhe era permitido falar sobre isso.” Convicta de que terá herdado da mãe essa energia esfuziante, Eun-Me não ignora que colheu ainda da sua progenitora o pudor do toque. Não havia grande contacto físico entre as duas, assim como não há essa procura mais táctil do outro entre os seus bailarinos.

“As minhas peças são muito individuais”, reforça, “e nós coreanos pouco ou nunca nos tocamos, homem e mulher, enquanto dançamos. Não gosto do toque, porque não me habituei a ele, mas também porque acho que não precisamos de nos tocar, podemos sentir e deixar que a energia nos mostre sem que precisemos de nos aproximar — as imagens e a imaginação funcionam.” Essa é, de resto, uma diferença de fundo que aponta entre a cultura sul-coreana e a cultura ocidental. No seu país, é deixado muito espaço para a fantasia, o discurso artístico não é explicativo nem pretende oferecer todas as pistas. Na Europa dá-se “demasiada informação e não há espaço entre as coisas”; nas suas peças “há muitos espaços em branco”. E exemplifica com um simples desenho da lua: no Ocidente desenha-se a lua, dá-se muita atenção à forma, à cor e até à expressão; “nós desenhamos tudo à volta e o espaço deixado vazio é que é a lua”.

Filha de homem calado e mulher esvoaçante, Eun-Me mantém na sua dança uma liberdade vigorosa e que se diria quase descontrolada, como uma criança que sente que não tem interditos, e uma criatividade que vem de ter crescido numa família pobre, sem dinheiro para brinquedos, supérfluos para quem apenas tinha o suficiente para os estudos e a comida na mesa dos quatro filhos. Ela que frequentava o mercado da terra e “comprava com os olhos”, satisfazendo-se com aquilo que a imaginação lhe oferecia ao colocar-lhe na pele as roupas e os brincos que sabia não estarem ao seu alcance, percebeu que o mundo podia ter outra forma quando viu um grupo a dançar na rua e conclui que podia, afinal, aplicar a sua liberdade e a sua energia num contexto em que até lhe emprestariam fatos para pisar um palco.

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De Nova Iorque às avós

A primeira experiência com a dança tradicional coreana está já muito longe no tempo e Eun-Me Ahn não demorou a perceber que aquela linguagem era pouco desafiante para o seu corpo ávido de movimento. Na dança coreana, “para se ser bom, tem de se repetir muito, repetir dez anos o mesmo movimento para que as raízes cresçam e se tornem mais profundas”. Eun-Me ficou com os gestos mas dispensou a repetição e, em vez disso, em 1994, partiu para Nova Iorque, “a meca da dança contemporânea naquela altura”, a fim de estudar na mesma cidade onde criavam Martha Graham ou Merce Cunningham. Era o escape óbvio para uma rapariga que crescera com os dedos apontados na sua direcção, por ser demasiado excêntrica para os padrões sul-coreanos. Esse comportamento incomum havia de transportá-lo para as suas primeiras coreografias, demasiado alienígenas para caberem nalguma definição reconhecível, enquanto procurava a sua originalidade.

Nova Iorque era também a estocada final nas aspirações da família de que pudesse vir a considerar uma vida regrada, de poucas saídas à noite, dedicada ao casamento e à família. Nos Estados Unidos teve então de reeducar o corpo e regressar a uma condição de estudante quando na Coreia já estava do outro lado do ensino. Depois criou a sua companhia, certa de que tão cedo não regressaria como coreógrafa para a Coreia do Sul. Só que em 2001, aos 39 anos, foi convidada para o lugar de directora da Companhia de Dança de Daegu, com um elenco de 45 bailarinos à sua disposição e um orçamento que lhe permitia criar sem outras preocupações. “Ninguém recebia convites destes na Coreia antes dos 50 anos”, comenta. “Foi óptimo, mas tive uma luta com a cidade de início, levou dois anos a aceitarem o que queria fazer.”

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A partir desse momento, com meios para dar largas à sua desmedida criatividade, Eun-Me foi conquistando não apenas um lugar de absoluto destaque na dança asiática, mas começou também a ser uma presença cada vez mais habitual nos grandes palcos do centro da Europa. Ao Teatro Rivoli traz, na sua estreia portuguesa, uma peça de 2011 que se tornou um dos grandes sucessos de circulação internacional na sua carreira. Dancing Grandmothers nasceu de uma longa jornada de bicicleta que fez durante um mês com alguns dos seus bailarinos pelo interior do país, procurando as “avós” em cada terra, conquistando a sua confiança e pedindo-lhes que dançassem. Queria perceber o que podia a dança significar para aquelas mulheres, muitas das quais se haviam já esquecido de que o corpo poderia responder a outros estímulos que não os do trabalho diário. “Todos os dias levantávamo-nos cedo, fazíamos e desfazíamos malas, dançávamos com as avós, voltávamos para o quarto, comíamos e víamos os vídeos para ter ideias para o dia seguinte”, resume.

Na altura, não sabia ainda exactamente aquilo que estava a preparar. Mas a visualização dos vídeos foi-lhe mostrando que as diferentes posturas físicas, os tempos, os gestos eram movidos por algo comum que foi traduzindo como a ideia de que aqueles corpos carregam a história de um país. “Aquelas são mulheres que, por causa do trabalho, ficam do tamanho dos homens”, diz. “No tempo delas não havia tempo para fazer dietas e, ao mesmo tempo, serem boas domésticas. Não tinham qualquer tempo para elas. E ainda trabalham, continuam a apanhar marisco e outras coisas.” Em palco, no entanto, estas avós que Eun-Me Ahn vai renovando no elenco da sua peça — para proporcionar a um maior número a possibilidade de pisarem o palco e viajarem, assim como para manter a espontaneidade diante de uma situação (dançar diante de desconhecidos) que lhes é estranha — ganham vida e rejuvenescem ao lado dos bailarinos profissionais, têm um pequeno vislumbre de estrelato; fora do palco, sabe a coreógrafa, começaram a encontrar-se para almoçarem juntas, para falarem, para jogarem cartas, para viajarem. “Exercício, boa comida, conversas, gargalhadas, aplausos, as avós parecem a miss Coreia”, graceja. A dança de Eun-Me Ahn existe sempre nesse espelho, em que o humor se reconhece na liberdade.

O Ípsilon viajou a convite do Teatro Municipal Rivoli

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