A maldição de Macedo

Sendo completo como retrato de grupo – a História e as histórias do Cinema Novo - na definição das reais características da “marginalidade” de Macedo revela-se curto.

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Nos Interstícios da Realidade: Macedo, o “marginal”

Chega às salas poucas semanas depois da morte de António de Macedo, mas é um projecto com uma longa história, que João Monteiro começou a preparar há anos, e que teve a sua primeira apresentação pública no Doclisboa do ano passado, ainda com Macedo bem vivo. Por falar nisso - em vida e em morte - a colecção de depoimentos e intervenções que Monteiro aqui inclui deverá fazer de “Nos Interstícios da Realidade” o último momento em que foi possível reunir uma série de nomes fundamentais do Cinema Novo português, entretanto desaparecidos em rápida e infeliz sequência: para além de Macedo, Alberto Seixas Santos, José Fonseca e Costa, Fernando Lopes. Outras figuras já desaparecidas, como Paulo Rocha e João Bénard da Costa, surgem em depoimentos de arquivo (embora não expressamente sobre Macedo), e entre as testemunhas vivas do Cinema Novo são convocados António Pedro Vasconcelos, António da Cunha Telles, Henrique Espírito Santo, para além de críticos como Jorge Leitão Ramos ou José de Matos Cruz.

É importante a abrangência dos contributos porque é impossível contar a história de Macedo (ou de qualquer outro protagonista do Cinema Novo) como um caso isolado e exclusivamente individual, sem dar conta - e isso o filme faz com certa consistência - das glórias e tristezas colectivas de uma geração, dos delicados equilíbrios e afinidades dentro dela, das alianças e das cisões, e da maneira como tudo isto se foi mutando ao longo dos anos. O conjunto dos depoimentos e da recolha arquivística conta este percurso com algum detalhe, dando o contexto geral para o recorte particular de Macedo nesta história, figura que depois do arranque com o Domingo à Tarde se tornou, entre o final dos anos 60 e os anos 70, das Sete Balas para Selma a A Promessa, um realizador com uma aura de “dissidência” em relação a um suposto eixo central do Cinema Novo, e tratado com uma certa violência pelos seus pares (ouvimos, no filme, AP Vasconcelos fazer um acto de contrição por uma crítica demolidora da Promessa nas páginas da revista Cinéfilo, mas haveria outros exemplos dessa violência, aliás sem precisarmos de sair dessa revista).

É na definição das reais características da “marginalidade” de Macedo que o filme se torna um pouco curto - insiste-se, porventura demasiado, na simplista divisão entre “cinema comercial” (de que Macedo seria, nessa geração, o avatar) e “cinema de autor”, divisão aliás frequentemente exposta em termos muito caricaturais, entra-se em contradição (como o próprio Macedo refere, “nem todos” os seus filmes foram “aceites pelo público”, assim como ele não foi o único, neste período, a encontrar o êxito comercial, ou pelo menos aquilo que no cinema português passa por “êxito comercial”), conduz-se o filme a caminho da confirmação da “maldição” de Macedo (algo contraditório com os seus sucessos populares, mas como se vê quando a propósito de Os Abismos da Meia Noite se mostra as quatro bolas pretas com que os críticos do Expresso receberam o filme, a “maldição” aqui é o reconhecimento crítico ou a falta dele), explica-se o ocaso do cineasta, o insucesso dos últimos filmes (como observa lucidamente Jorge Leitão Ramos, não há pior para um “cineasta do público” do que perder o público, e o derradeiro Macedo, Chá Forte com Limão, teve menos de mil espectadores numa época, anos 90, em que o público estava a começar a perder-se) e os mais de vinte anos sem conseguir voltar a filmar depois de 1993, como o resultado de uma determinação mais ou menos conspiratória (o que, sendo uma “explicação” que o cinema português tem sempre à mão, não é grandemente elucidativo, por muito injusto que tenha sido o final forçado da obra de Macedo).

Em todo o caso, e mesmo que pontualmente se possam questionar as premissas ou as conclusões seguidas pelo filme, a articulação permanente entre as circunstâncias particulares de Macedo e as circunstâncias colectivas do cinema português é um dos atributos do filme, que consegue ganhar o retrato de grupo sem perder o retrato individual. Sendo muito completo a esse nível, o da História e das histórias, é pena que acabe por ter um lugar muito reduzido para a análise mais estritamente fílmica, para o “arrêt sur image”, capaz de mergulhar no que há de específico e de especial na massa dos filmes de Macedo, o que é que os distingue, o que é que eles nos dizem.

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