O que a AR deve fazer para nunca esquecer o combate à violência doméstica

É chegado o momento de o Parlamento cumprir a sua obrigação: lembrar, de cada trágica vez que tiver de ser, em cada início de sessão ou debate quinzenal, todas as vítimas de violência doméstica no país.

Eis uma coisa que aprendi com o parlamento da Catalunha, e que não tem nada que ver com a questão da independência. No princípio do mês liguei-me ao sítio do Parlament para assistir em direto a uma declaração sobre os resultados do referendo de 1 de outubro. Para minha surpresa a presidente do parlamento, Carme Forcadell, iniciou a sessão dando informações atualizadas sobre o estado de duas mulheres vítimas de violência doméstica, uma das quais tinha falecido. De seguida, atualizou os números de vítimas mortais de violência doméstica na Catalunha. E só depois deu a palavra ao presidente da Generalitat para que se pronunciasse sobre o assunto do momento. Nem a esperada (e logo suspensa) declaração de independência alterou o dever de memória perante as vítimas da violência doméstica.

Aquele ato — que presumo pouca gente tenha visto — foi um soco no estômago. Não sei se é uma obrigação regimental do parlamento catalão. Mas sei qual é a intenção do ato: obrigar os legisladores a encararem a realidade brutal da violência doméstica. Obrigar os representantes dos cidadãos a nunca esquecerem as vítimas. Obrigar a instituição máxima de uma democracia a nunca retirar o combate a este crime do topo das suas obrigações. Isto vale para o Parlamento da Catalunha como vale para qualquer outro parlamento, seja ele autonómico ou nacional. E eu defendo que deve valer para o Parlamento português.

Portugal não é o único país no qual a cultura adquirida desculpabiliza, branqueia ou justifica a violência doméstica. Mas casos recentes no sistema judicial português e a todos os níveis da nossa sociedade, desde a elite política até à violência de género no namoro e entre jovens, comprovam que continuamos a ter problemas sérios de ocorrência — e de desculpabilização — de violência doméstica. Sem uma mobilização séria de toda a sociedade não chegaremos nunca a atenuar esta realidade, muito menos a erradicá-la.

Neste quadro, que pode a Assembleia da República fazer? Muito, é claro. E muito que vai para lá de lembrar a memória das vítimas. O Parlamento pode legislar e fiscalizar. Pode ir mais longe: também aqui precisamos de um pacto contra a violência doméstica, e que ele seja contenha obrigações e metas concretas, e que seja assinado por instituições do mais amplo leque possíveis de áreas da sociedade, da educação à saúde ao desporto e à justiça. Mas tudo isso o Parlamento português fará melhor se não permitir a si mesmo aquilo que todos os dias permitimos a nós mesmos: distrair-nos, encolher os ombros.

Dir-se-á que abrir cada sessão plenária da AR com a informação atualizada dos crimes de violência doméstica será uma estratégia de choque. Dir-se-á que lembrar as mulheres assassinadas antes de cada debate quinzenal com o primeiro-ministro será um gesto brutal. Sim, será brutal. Será também necessário.

Enquanto a cultura predominante — até no domínio judiciário — continua a ser a de afastar o problema da vista, enquanto até um ex-ministro da Cultura é condenado — com pena suspensa — por violência doméstica, o país precisará de reforçar as formas de encarar a sua realidade. O país político, representado pelo Parlamento e o governo, não poderá mais esquecer a sua obrigação de agir. O Estado não poderá mais desviar o olhar de todas as mulheres agredidas e assassinadas em casos de violência doméstica em Portugal.

Enquanto os outros órgãos de soberania esquecem a sua obrigação, é chegado o momento de o Parlamento cumprir a sua: lembrar, de cada trágica vez que tiver de ser, em cada início de sessão ou debate quinzenal, todas as vítimas de violência doméstica no país.

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