Jogos perversos

Mais do que um romance polémico, é uma provocação que exige ao leitor uma atitude crítica.

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Nada é uma provocação que exige do leitor uma atitude crítica, um livro que incomoda, e com um final arrepiante Anita Schiffer Fuchs

Passados sete anos chega a Portugal o polémico romance da dinamarquesa Janne Teller (n.1964), Nada, que teve durante algum tempo a sua venda proibida a adolescentes em algumas regiões da Escandinávia. Escrito originalmente para jovens, depressa se tornou num romance também para adultos (vários são os livros que seguem este caminho), mas não sem antes ter provocado algumas discussões.

De início parece um comum romance para adolescentes: um grupo de jovens, numa pequena cidade dinamarquesa, começa as aulas, no sétimo ano lectivo das suas vidas. De repente, um dos alunos, Pierre Anthon, levanta-se e diz: “Nada tem significado. Sei isso há muito tempo. Portanto, não vale a pena fazer nada. Também já cheguei a essa conclusão.” E depois saiu, deixando a porta entreaberta, “como um abismo de escárnio”. Subiu a uma ameixeira que havia perto da escola (a que já não tinha intenções de voltar) e deixou-se ficar por lá durante uns dias, a atirar ameixas verdes para o caminho, a olhar o céu e a exercitar-se na arte de não fazer nada. Quando os colegas passavam, ia atirando as suas diatribes para os provocar: “Tudo isto [a vida] é uma enorme farsa, que consiste unicamente em fazer de conta e em conseguir ser o melhor nisso, mesmo.” E outras: sobre o significado de ser alguém na vida, ou de que quando se nasce isso é já o princípio da morte, de que não adianta fazermos nada.

Esta situação, que a princípio foi quase cómica, irritava bastante os colegas, mas estes não encontravam maneira de o demover de cima da ameixeira. E as suas ideias filosóficas pareciam já baralhá-los. “Não queríamos viver no mundo que Pierre Anthon nos deixava antever. Queríamos ser alguém, ser alguma coisa.” Este sentimento leva-os a quererem mostrar a Pierre Anthon que ele estava enganado, para isso engendram uma maneira de o fazer: juntar numa pilha de objectos aqueles que para cada um deles terão mais significado, é o “monte de significados”.

O que logo de início nos apercebemos é que a escolha das personagens não foi casual, aquele não é de forma alguma um grupo de jovens todos do mesmo ‘tipo’. Janne Teller fez um grupo heterogéneo que representa várias partes da sociedade, uma espécie de símbolo de grupo social, não apenas da dinamarquesa, mas de uma outra qualquer nacionalidade europeia: o patriota e conservador menino da classe alta com valores de direita, a freak de tranças e cabelo azul, o beato protestante, o imigrante (ou filho de) de religião islâmica, o líder do grupo (filho de um talhante) que toca guitarra e canta canções dos Beatles, a menina bonita, e a menina gorda. Ao optar por esta escolha Janne Teller quis também mostrar o que cada ‘representante’ poderia ter por mais importante no seu grupo social. Naquele jogo cada um dos jovens diria o que teria mais significado para um outro, e este era obrigado a entregar isso para ser depositado no “monte de significados”. E se a princípio tudo parecia ir mais ou menos bem, ao escolherem, por exemplo, uma rosa que fora do casamento da avó, a bandeira dinamarquesa, ou uma bicicleta nova, de repente a história transforma-se num pesadelo, numa espiral demolidora: as escolhas tornam-se mais pesadas e passam a incluir profanação de um caixão, de símbolos religiosos, de mutilação do corpo ou de abuso sexual.

Tudo isto como se a dinamarquesa Janne Teller nos quisesse dizer (ou pelo menos por vezes é essa ideia que passa para o leitor) que a necessidade de procurar um significado para as coisas, pode levar (e isso acontece com as personagens jovens) a que se percam os valores mais básicos da sociedade (como seja o respeito pela vida), acabando com cada um a esquecer-se de si mesmo, da sua individualidade, dos outros, e caminhando para uma perdição que se sabe já sem possibilidade de redenção. Mais para o final do livro, quando tudo foge das mãos dos adolescentes e atinge proporções nunca esperadas, o leitor pode acabar também a reflectir sobre o significado (ou o seu vazio) de alguma “arte moderna” e de como ela pode espelhar a sociedade que a produz.

Se há alguma “moral” nesta quase parábola nórdica (em alguns aspectos, excluindo o elevado grau de crueldade, faz lembrar o romance Os Cães, do sueco Ola Nilsson, por cá publicado pela Eucleia, sobre as dinâmicas de grupo entre adolescentes), é esta perda de valores, da inocência que de certa forma protege os jovens de um mundo cruel, mas também como se pode manifestar tão facilmente o nosso lado obscuro. Mais do que um livro para jovens ou para adultos, este pequeno romance, Nada, é uma provocação que exige do leitor uma atitude crítica, um livro que incomoda, e com um final arrepiante.

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