Cantos eternos, rumos novos: uma noite memorável com Ricardo Ribeiro no CCB

O tributo prestado a José Afonso celebrou justamente o homenageado, enobreceu o cantor e dignificou os músicos. Uma noite memorável, pelas melhores razões.

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Ricardo Ribeiro no Tributo a José Afonso no CCB HUGO MOURA
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Ricardo Ribeiro com Filipe Raposo numa pausa dos ensaios, antes do espectáculo MIGUEL MANSO

Ao escolher José Afonso, em resposta à Carta Branca que lhe estendeu o Centro Cultural de Belém (CCB), Ricardo Ribeiro deixou-se levar por uma paixão musical, e isso ficou claro nas declarações que foi prestando à imprensa nos dias que antecederam o espectáculo. Mesmo já no palco, na noite de 26 de Outubro, perante um CCB de lotação esgotada, ele disse o que lhe ia na alma (como sempre faz): “O Zeca não precisa de mim para nada, mas nós precisamos da música dele.” Se a última parte da frase é verdadeira, a primeira peca por excessiva modéstia. Porque o que ele ali fez foi aquilo que provavelmente José Afonso aplaudiria, se fosse vivo: dar à música a liberdade que a faz viver.

E isso foi, reconheça-se, obra dele e de todos os outros intervenientes no espectáculo. A começar por Filipe Raposo, ao piano, autor dos arranjos e encarregado da direcção musical, e a acabar em cada um dos músicos do excelente naipe que a ele se juntou: Mário Delgado (guitarras), Ricardo Toscano (saxofone e clarinete), António Quintino (contrabaixo) e Jarrod Cagwin (percussões).

Do nervosismo inicial, que ele ilude falando, à forma pessoalíssima como foi abordando cada uma das canções, Ricardo Ribeiro voltou a demonstrar a sua grande capacidade como intérprete. Não o fado que ele para ali chamou, embora dentro dele viva, mas sim aquele modo de cantar que foi absorvendo ao longo dos anos, caldeado certamente no fado mas com reminiscências do Sul, de um Sul de colorações várias, dos cantos árabes, da pose flamenca, das paixões ardentes do tango. E isso, em lugar de turvar a obra de José Afonso, deu-lhe novos rumos sem a ferir. Graças à inteligência dos arranjos, à gestão dos tempos fortes e das subtilezas a cargo de cada músico, pudemos ouvir o concerto numa harmonia de camadas: sentiu-se sempre Zeca Afonso, ouvindo-se em simultâneo Ricardo Ribeiro, naquilo que lhe é peculiar, e cada um dos músicos, num todo coeso e certeiro.

O arranque, com Ricardo na guitarra (ousadia que ele usa com parcimónia) numa homenagem pessoal a Zeca Afonso, abriu caminho a Ó Ti Alves, ligada a Verdade ou mentira, e através delas já foi possível perceber o tom do espectáculo. No fundo do palco, projectadas, largas cortinas falsas em várias cores iam, consoante as canções, mostrando fotografias de José Afonso em várias épocas, ao lado de frases retiradas de cada uma das canções: “São poucas mê menino”, “Silêncio aflito”, “Sou como o sossego, sei esperar”, “No quarto das danças”, “Um raio de sol queimado”. Frases que de imediato identificariam as canções, para os que bem as conheciam, ou pareceriam enigmáticas aos restantes. Mas seria esse o seu propósito: apontamentos, frases soltas, pistas. Rastos do que os sons desvendariam depois. O alinhamento inscrito no programa foi cumprido, reservando-se a surpresa ao modo como as canções iam sendo abordadas, às vezes só voz e piano, ou com apontamentos de outros instrumentos, outras com o quinteto em força, em revoadas vigorosas mas nunca excessivas.

Assim se ouviram, então, Chamaram-me um dia (“mas tive o diabo na mão”, haveria de cantar a assistência quando a canção foi repetida no único encore da noite), Endechas a bárbara escrava (Camões musicado por Zeca e revitalizado por Ricardo), Canção da paciência, Maio maduro Maio, Que amor não me engana (numa excelente interpretação, com inflexões arabizantes; e aqui o papel de Jarrod Cagwin foi essencial, ele que tem trabalhado com o libanês Rabih Abou-Khalil, com quem Ricardo gravou, para a Enja, o álbum Em Português, de 2008), Milho verde, A morte saiu à rua, Era um redondo vocábulo (só voz e piano, num belo arranjo para uma belíssima canção), Maria faia (com um arranque a guitarra eléctrica), Cantigas do Maio (muito aplaudida no final), De sal de linguagem feita (com voz e instrumentos a apostarem nos uníssonos), Canção de embalar, Senhora do Almortão (ambas com soluções excelentes), Vejam bem (com Ricardo a puxar pela voz nos “caminhos do pão”) e De não saber o que me espera, num final ritmado e entusiástico.

Houve, do ponto de vista musical, algumas soluções geniais e inesperadas, e houve momentos em que Ricardo Ribeiro, como cantor e em diferentes registos, se transcendeu, como na suavidade de Canção de embalar ou na vivacidade quase eufórica de Senhora do Almortão (aquele “não queiras ser castelhana” parecia, embora não fosse, adaptado a outras realidades que nestes dias nos cercam). E houve momentos que, por muito louváveis, teriam ganho com uma segunda oportunidade. No geral, porém, foi um concerto muito perto da excelência: celebrou justamente o homenageado, enobreceu o cantor e dignificou os músicos. Uma noite memorável, pelas melhores razões.

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