Wim Wenders, condecorado de surpresa por Marcelo em Lisboa: “A Europa não é o problema, é a solução”

Além do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, o realizador alemão recebeu também a Ordem de Mérito na Gulbenkian, onde pedira que Espanha e Catalunha se entendam e que Bruxelas faça mais perante o “Brexit”. E que se preserve o cinema em versão digital.

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Miguel Manso
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Wim Wenders ia sair de Lisboa com um prémio. Sai de Portugal com ele, mas também com uma condecoração. O realizador alemão veio receber o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva 2017, mas Marcelo Rebelo de Sousa surpreendeu o cineasta e o auditório da Fundação Gulbenkian ao atribuir a Ordem de Mérito a um realizador que “nunca foi estrangeiro em Portugal, foi sempre um português que vivia Portugal de uma forma original”. Wenders fizera minutos antes uma fervorosa defesa da União Europeia vista de Lisboa, essa finisterra cujo “olhar está agora firmemente focado no continente” atrás de si, clamando: “A Europa não é o problema, é a solução”.

Na sessão estiveram o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, o director da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, José Manuel Costa, o ex-secretário de Estado da Cultura Jorge Barreto Xavier, ou o presidente do Turismo de Portugal e Francisco Pinto Balsemão, bem como o já galardoado com o mesmo prémio Eduardo Lourenço. Um auditório quase cheio para ver e ouvir Wim Wenders, o galardoado com o seu casaco de fraque e ténis, sem laço nem gravata como se pronto a receber uma medalha portuguesa. “Não tinha ideia”, disse ao PÚBLICO no final da sessão, brincando e deixando no ar um sorridente: “Se eu soubesse...”. A Ordem de Mérito aterrou-lhe ao peito de surpresa, para gáudio de uma sala que já estava rendida à habitual congenialidade do Presidente e às palavras galvanizadoras da Europa do cineasta.

Marcelo Rebelo de Sousa encerrava a sessão pegando no espírito das palavras de Wenders, elogiando “a Europa da paz num mundo em guerra”, sublinhando o papel da cultura e como “não é possível construir a Europa sem convicção”. São precisos “líderes fortes” num “mundo globalizado”, “neste tempo de medos” e ter atenção à vaga de nacionalismos e eurocépticos — “esta realidade espalha-se como uma mancha de óleo”. E, em jeito de remate, fala pelos portugueses. “Sentimos uma afinidade natural com Wim Wenders”, crê, “também porque ele marcou a nossa vida desde que nós, os da minha geração, nos conhecemos, até hoje”; o seu europeísmo convicto e papel de preservador do legado europeu fizeram o resto. Por uma “razão simultaneamente nacional e europeia”, atribuiu ao alemão a Ordem do Mérito em Portugal, a “um grande cineasta que todos reconhecemos em Portugal, na Europa e no mundo”.

Wim Wenders começara, uns 30 minutos antes, o seu discurso de uma forma comunitária, com humor e uma pitada de auto-depreciação alemã. “E agora, é altura para o maior teste de resistência de qualquer cerimónia europeia – o discurso do alemão.” Risos. A relação com a audiência era necessária para o exercício que pediu a todos. “Ver o futuro da Europa a partir desta grande cidade, Lisboa”, de onde acredita quase ser possível ver a imagem descrita por Arquimedes de que, com uma alavanca, poderia mover o mundo. Mãos à obra, aqui “tão na ponta que quase podemos fingir que podemos elevar todo o continente”.

Filmou pela Europa e nos inesquecíveis Estados Unidos de Paris, Texas, mas num prémio europeu e numa cerimónia que distinguiu também com um prémio especial a eurodeputada italiana Silvia Costa, enveredou pela segunda via. Não falaria (só) do cinema, falaria do “paraíso onde muitas pessoas de todo o planeta adorariam estar”, recordando a criança que foi na Alemanha, “crescendo nos escombros da Grande Guerra”. Mas, claro, “há problemas no paraíso”. Fronteiras, nacionalismos, medos. “Todos esses sonhos nacionalistas aconchegantes acordarão amargamente isolados, sem protecção”, porque “a Europa não é o problema, é a solução”.

“Organizem-se, espanhóis e catalães, e falem. Organizem-se, húngaros, polacos, austríacos, checos”, enumerou. “Organizem-se, Bruxelas, Berlim, Paris, não deixem esses nacionalistas arruinar a nossa bela casa”, disse, questionando se foi mesmo tudo feito para evitar o “Brexit”. Além do elogio ao diálogo, o elogio à cultura – "a melhor arma, o nosso melhor argumento, a nossa armadura”, acredita o realizador, “não são as finanças, não são os bancos, é o nosso património comum”, dos poetas aos padres, da Renascença à Reforma, dos direitos humanos às guerras – “porque lhes sobrevivemos”.

Preocupado com o risco de implosão do sonho europeu, com uma “Europa sem uma imagem positiva de si mesma”, Wim Wenders defendeu o ensino da diversidade cultural do continente, a preservação “dessa língua comum chamada  cinema” em formato digital. “Existe, o cinema europeu”, provocou, aludindo ao “cinema global anónimo” made in America.

Foi um discurso político e abrangente de um cineasta por quem muitos na sala professaram um sentimento pessoal e emocional. Deu autógrafos, conversou. “Lembrarei sempre os seus filmes como uma experiência na minha vida”, dissera antes o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes. O crítico cultural Pedro Mexia, encarregue de fazer o seu elogio formal, admitiu sobre Paris, Texas: “É o filme da minha vida”. Dos primeiros filmes de estudante, do gosto pelos Kinks, por Nick Cave ou pelos Rolling Stones, a Asas do Desejo, passando pelo “muito cá de casa Lisbon Story”, Mexia passou em revista o currículo do cineasta alemão. “Todos lhe devemos alguma coisa”, rematou o colunista do Expresso, “agradeço-vos a possibilidade de lhe agradecer”.

Wenders regressou a Portugal para receber um prémio instituído em 2013 e que anualmente distingue um europeu que trabalhe na defesa ou promoção do património cultural europeu. Já foi entregue ao ensaísta português Eduardo Lourenço e ao cartunista Jean “Plantu” Plantureux (ex-aequo em 2016), ao romancista turco Orhan Pamuk (2014) ou ao músico espanhol Jordi Savall (2015) e ao escritor italiano Claudio Magris (2013).

Os mais de 50 anos de carreira de Wenders traduzem-se em mais de 60 filmes, sendo também um profícuo escritor e fotógrafo – a relação com Portugal estabeleceu-se logo no início da década de 1980, quando filmou O Estado das Coisas (com produção de Paulo Branco), que venceria o Leão de Ouro em Veneza; voltou para rodar Até ao Fim do Mundo (1990) mas é talvez Lisbon Story, com Amália Rodrigues, que mais vincula o cineasta ao território português. Além do seu trabalho artístico, Wenders é também um participante em iniciativas como Uma Alma para a Europa, que estabelece laços entre cidadãos e instituições europeias com fim a promover a democracia através da cultura. A fundação com o nome do realizador de Paris, Texas, fundada em 2012, quer reunir toda a sua obra e torná-la acessível a todos, bem como promover a cultura.

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