O pai tirano

O autor de A Lula e a Baleia e Greenberg regressa à sua melhor filme com uma comédia de dentes de fora sobre uma família que cresceu à sombra de um pai sufocante.

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The Meyerowitz Stories é um arrasador jogo de massacre familiar

Quando tudo apontava que as suas neuroses burguesas nova-iorquinas iriam tornar Noah Baumbach no sucessor de Woody Allen dos bons tempos, eis o cineasta a entrar antes pelos carris do jovem indie Alex Ross Perry e a propor uma catártica e cruel comédia sobre pais e filhos. É verdade que pais e filhos, famílias em convulsão (sobretudo da variante nova-iorquina-judaico-artística), foram sempre tema recorrente do cinema de Baumbach desde que o descobrimos com A Lula e a Baleia (2005). Mas, depois do interregno Greta Gerwig de Frances Ha (2012) e Mistress America (2015, que por cá não foi a sala), The Meyerowitz Stories (New and Selected) traz a dentuça mais afiada, como se Baumbach tivesse pedido emprestada a crueldade desencantada de Listen Up Philip (2014) e Golden Exits (2017) de Ross Perry e substituísse a desfocagem solar e entorpecedora desses filmes pela nitidez contrastada da Grande Maçã (como quem diz: esta gente não engana ninguém).

The Meyerowitz Stories é um arrasador jogo de massacre familiar à volta de Harold Meyerowitz, professor universitário de sucesso e escultor obscuro, mulherengo e narcisista, que nunca saíu verdadeiramente da obscuridade e nunca se interessou realmente por nada nem ninguém a não ser por si próprio, figura esmagadora e sufocante a que Dustin Hoffman empresta uma truculência simultaneamente enfurecedora e tocante.

Baumbach constrói o filme como uma “colecção de contos”, uma sequência de episódios interligados que desenha elegantemente a prisão em que a presença dominadora do pai tornou a vida dos três filhos, e joga de maneira sábia mas nunca ostensiva com as imagens de marca do elenco que foi buscar. Se Hoffman é impecável num raro papel desagradável, Adam Sandler (o filho artolas) mergulha na “profundidade de campo” que até agora só Paul Thomas Anderson lhe tinha conseguido dar em Embriagado de Amor, Ben Stiller (o filho de sucesso) confirma como é muito melhor actor quando lhe dão papéis onde ferrar o dente, e Elizabeth Marvel (a filha solteirona) diz tudo o que há a dizer só com o tom de voz e a presença física.

Não é, avise-se desde já, uma comédia de gargalhadas francas, para ver de ânimo leve — a displicência com que o clã Meyerowitz dispara farpas dolorosas exige algum estômago — mas isso apenas torna este regresso à boa forma de Noah Baumbach mais digno de atenção, mesmo que restrito ao pequeno écrã.

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