Uma afinação interior

Stimmung, que Stockhausen compôs nos EUA em 1968, é uma peça desafiante (para intérpretes e ouvintes), mesmo na sua calmaria e no seu vanguardismo de pretensão universalista um pouco datado.

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Márcia Lessa/Fundação Calouste Gulbenkian

“Nada de oriental, nada de filosófico: apenas os dois bebés, uma casa pequena, silêncio, solidão, noite, neve, gelo: puro milagre!”. Assim descreveu Stockhausen a sua experiência de composição de Stimmung em 1968, em Madison, nos Estados Unidos da América.

Apesar das suas declarações, as influências orientalizantes, os “exotismos” e uma atitude filosófica perante a música e o universo são difíceis de esconder em Stimmung. Stockhausen tinha acabado de chegar de uma viagem de um mês ao México, onde visitou as ruínas dos templos aztecas. Essa viagem foi inspiração assumida para a composição de Stimmung, onde aparecem os nomes mágicos dos deuses aztecas entre muitos outros, de todo o mundo e de diferentes culturas e religiões.

Obra emblemática daquela fase da sua vida, Stimmung foi também uma peça muito marcante para os jovens compositores das gerações seguintes. Um marco histórico.

No Panteão Nacional montou-se uma estrutura circular, com cadeiras à volta dos cantores que, num palco central, com uma luz ao centro, iniciaram o “ritual”. Vestidos de cores diferentes, os cantores fizeram o trabalho extraordinário de revisitar Stimmung, uma obra que poderia ser comparada a uma longa tapeçaria, com uma estrutura baseada nos harmónicos de um si bemol que está lá sempre do princípio ao fim.

Sobre este “tapete”, surgem desenhos rítmicos, jogos fonéticos e vocais em 51 “momentos” que se sucedem, à vontade dos intérpretes. A interpretação dos seis solistas do Coro Gulbenkian foi fiel sobretudo à “quietude” que a peça exige, instalando os ouvintes num estranho estado de meditação nocturna, à beira do sono e do sonho. Mas Stimmung é desafiante (para intérpretes e ouvintes), mesmo na sua calmaria e no seu vanguardismo de pretensão universalista um pouco datado.

História, apenas? Um documento? Não propriamente. Aquele tapete esconde, entre o sussuro (não acordes os bebés!), momentos de intensidade que nos acordam (“Toma atenção, ó tu que dormes”) e até, frequentemente, com grande sentido de humor. Jogos fonéticos com as sílabas, deuses e dias da semana, palavras-som, palavras mágicas, invocações universais, vocalizações místicas cruzadas com frases banais (“Come on!”), humor e erotismo, tudo isso está lá, à medida que o som desdobra o enorme tapete colorido de cerca de 75 minutos.

Talvez pudesse ter havido mais descontracção – um certo formalismo respeitoso às vezes refreia o risco e o “bom humor”. Mas esteve lá o essencial: ritual e mantra, profano e sagrado, reza e jogo, tudo isso se cruzou na reverberação do Panteão Nacional, graças ao trabalho rigoroso e concentrado dos intérpretes que, sentados em roda, sem maestro, conseguiram revelar mais uma das mil faces de Stimmung. E ensinaram ao crítico – que não é muito dado a quietudes – que também pode ser agradável estar quieto e deixar apenas o som das vozes encher o espaço, fora e dentro. Apesar de que, às vezes, apetecia andar pelo Panteão ouvindo o som no espaço de diferentes pontos de escuta, variando a posição em relação ao círculo de seis colunas à nossa volta (os cantores estão munidos de microfones e a sua voz é amplificada).
Stimmung tem vários sentidos, em alemão. Entre outras coisas, significa “afinação”. Mas não é só a afinação das vozes que se ouvem cá fora. Stimmung é também uma procura de “afinação” interior, uma procura de unidade dentro de si. Será que algum ouvinte esteve lá perto, naquela noite? Chiu!... Não fales, que o bebé ainda acorda.

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