A hora de Rio

O chavão de que as eleições autárquicas não têm leituras nacionais não é uma “lei” da Ciência Política, mas uma máxima de almanaque de autoajuda para derrotas políticas.

E o facto é que há eleições autárquicas com desaires irrelevantes quando os líderes são fortes e maioritários no Parlamento (o revés de Cavaco, em 1989, não prejudicou a sua vitória nas legislativas em 1991), mas há também vitórias de “Pirro” que geram a demissão de frágeis líderes com idênticas maiorias (caso de Balsemão em 1982). Por outro lado, há derrotas esmagadoras em autárquicas que conduzem à demissão de governos quase-maioritários (Guterres em 2002) e outras que encerram ciclos de liderança na oposição, como sucedeu agora com Passos Coelho.

Passos teve a lucidez de sair de palco, poupando-se a um inferno pessoal e poupando o PSD a uma guerra civil larvar até às eleições de 2019, nas quais seria ingloriamente imolado.

Como primeiro-ministro, o país deve-lhe a aplicação tenaz das políticas de austeridade negociadas entre a troika e o governo de Sócrates, colocando Portugal numa rota de equilíbrio financeiro e de crescimento. Fê-lo com honestidade e coragem, mas nem sempre com sabedoria: a retórica do empobrecimento coletivo e o discurso divisionista entre gerações a propósito da tributação das reformas alienaram de forma espúria as gerações mais velhas. E o caráter irrazoável de algumas políticas de rigor invalidadas pelo Tribunal Constitucional evidenciou que a insensibilidade política do Ministério das Finanças não foi compensada por uma boa equipa jurídica. Já como líder de oposição, a esquerda e a imprensa dominante retrataram-no como um opositor inconformado, azedo, monotemático, de retórica economicista e engordurada, ansiando por uma catástrofe económica para regressar ao poder. Paradoxalmente, decidiu enquadrar-se teimosamente nessa lenda “negra” criada à sua medida. No final, a par de más escolhas para as autarquias, o crescimento económico calou esse discurso apocalíptico, fulminando a sua liderança. A continuação de Passos garantiria uma maioria absoluta ao PS.

A retirada estratégica do “passismo” sem Passos

Esperar-se-ia a emergência de uma candidatura do “passismo” à liderança do PSD ou a de um cavaleiro solitário por ele apoiado. Montenegro, que herda dessa fação o peso aparelhista, tem tropas mas não tem ideias. Rangel, um lone ranger semi-ungido por Passos, tem ideias (nem sempre boas, como foi a “asfixia democrática” em 2009), mas não tem tropas. Dir-se-ia que se coligariam, mas preferiram desistir. Essa desistência é grávida de uma leitura política. Nenhum deles quis assumir o ónus de liderar o PSD num dos seus períodos mais dramáticos, percorrendo o deserto da oposição e assumindo o risco de um desaire eleitoral em 2019 face a um PS que surfa num pico de popularidade. É, contudo, nos tempos de sombras que se forjam os verdadeiros líderes. Rui Rio assumiu esse risco.

Haverá, ainda assim, para os descontentes, a alternativa da candidatura recursiva de Santana Lopes, para quem queira repetir a experiência de 2004.

Missão impossível?

Rio é um líder voluntarista que no Porto geriu bem um município de complexidade superior à de muitos ministérios. Se for eleito defrontará, na frente externa, um PS reforçado, em boa maré económica e com uma imprensa favorável, apto a obter uma vitória em eleições antecipadas Na frente institucional, coexistirá com um Presidente popular e imprevisível, que teria preferido outro líder do PSD, mais dócil ao seu projeto político pessoal. Na frente interna coexistirá com um grupo parlamentar com muitos integrantes que prefeririam o próprio diabo, de que falava Passos, à sua liderança.

À nova direção esperam tarefas como a de galvanizar as bases, falar com o eleitorado urbano, renovar lideranças, fazer pontes com o setor académico e as empresas e recentrar o partido, harmonizando uma agenda social, a qual integra o ADN do PSD (e que o “passismo” deixou cair), com o reforço da autoridade do Estado e com um patriotismo republicano não federalista. Cumprirá que evite uma hostilização espúria à Justiça e à imprensa e contorne o tema divisionista da regionalização e as viragens à “esquerda” ou à “direita” deliradas pelos comentadores, na medida em que o PSD tem de equilibrar pilares sociais-democratas, liberais e até conservadores. Cumpre não esquecer que a par de um voto móvel do “centrão” que disputa com o PS, o PSD tem um eleitorado conservador e social que está a ser canibalizado pelo CDS.

Unir o partido em torno de um projeto político será a prioridade. Contudo, a complacência com guerrilhas internas por parte de notabilidades estafadas, comentadores venenosos e viúvas de lideranças póstumas (que preferem mais seis anos de oposição, a Rui Rio) implicaria beber, absurdamente, uma taça de cicuta, em nome de um farisaico pluralismo interno. Em 1978-79, Sá Carneiro viu um setor do partido rachar o grupo parlamentar para formar a ASDI. A imprensa situacionista augurava o colapso do líder. O facto é que, o PSD ficou mais forte e ganhou as eleições de 1979 com a AD, enquanto da ASDI ninguém mais ouviu falar. No limite, uma clarificação dura é preferível a consensos apodrecidos.

 

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