Voltar ao lugar onde fomos felizes: 20 anos de Sem Cerimónias

Há vinte anos, era editado um disco que mudaria a história do rap português e, por arrasto, da música portuguesa. Mas a sua maior virtude não é “historiográfica”, antes o facto de, hoje, continuar a soar perfeitamente fresco, enérgico, intenso: um “clássico”, então.

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Imagine-se, nos anos 90, três miúdos agarrados ao telefone para estúdios altamente sofisticados em Nova Iorque a explicar que, em Portugal (!), no Porto (!!), havia um grupo de rap

Entre outras deficiências (a composição instrumental e, em geral, a qualidade da gravação e mistura) que são apontadas a Rapública, estreia do rap português no registo discográfico em 1994, uma delas passa pelo foco concedido aos grupos de Lisboa e da Margem e pelo esquecimento de quem já se mexia a norte do país desde o início da década (algo visível na capa-mapa do álbum). A verdade, porém, é que, embora convidados para integrar a pioneira compilação editada pela Columbia, os Mind Da Gap (MDG, ex-Da Wreckaz, nome com o qual ainda chegaram a dar concertos) entenderam não o fazer por opção própria, numa já então precoce manifestação da personalidade artística que viria a ser uma das suas imagens de marca.

O resultado dessa decisão chegaria um ano mais tarde no EP Mind Da Gap (que incluía o célebre single Piu-Piu-Piu), logo então editado pela NorteSul (subsidiária da Valentim de Carvalho), que viria igualmente a lançar, um ano depois, Flexogravity, o praticamente desconhecido EP colaborativo (anos 90, tempos das fusões) entre o Blind Zero e os MDG (bem como uma série de projectos alternativos existentes à data: Cool Hipnoise, Repórter Estrábico, Ithaka, entre outros). Foi o A&R da editora a norte do país, Pedro Tenreiro (a sul era Rui Miguel Abreu quem assumia os comandos), quem primeiramente viu nos MDG uma aposta prometedora: “O Piu-Piu-Piu foi aquilo que usei como argumento para convencer a editora, mas não foi o que me fez pensar ‘Estes tipos são diferentes!’. Os samples que tinham naquela maqueta, a postura de dois miúdos burgueses, brancos, com letras que iam desde a dificuldade de acordar de amanhã ao roubo de órgãos [referência a Dádiva, do EP], que na altura foi notícia nos jornais, com uma pitada de ironia e humor na qual eu me revia. Eles não eram aquela coisa do ‘Tem de ser do ghetto, tem de ser socialmente empenhado!’”.

Para (não) ouvir os Depeche Mode

Antes desse EP, porém, a história começara já no dia 10 de Julho de 1993: Hugo Piteira (Presto), juntamente com Pedro Godinho (elemento dos Reunião das Raças, primeiro grupo de rap do Grande Porto formado em Matosinhos) e outros amigos, vão ao antigo Estádio das Antas, concerto dos Depeche Mode. Mas não era nestes que tinham gasto o dinheiro: o que lhes interessava eram os Marxman, grupo de rap irlandês que fazia as primeiras partes do tour da banda de Martin Gore. No meio da confusão, Godinho avistou um alien e avisou Piteira (“Olha, está ali um gajo de calças largas e chapéu.!”), o suficiente para que, dali a minutos, estivessem à conversa com Nuno Carneiro (Ace).

Depois desse encontro de terceiro grau, Presto e Ace passaram a trocar discos e impressões, até que a mãe do primeiro lhe falou do filho de uma amiga que estava a viver em Inglaterra. Rolando Sá (Serial), que viria a ser o produtor dos MDG, lembra-se do quanto a cena londrina lhe disse: “Em Londres, apaixonei-me pelo hip-hop. Vi aquele vídeo dos Cypress Hill, o How I Could Just Kill a Man, e fiquei mesmo. Tau! Isto é muito bom, adoro isto! Pensei: ‘Quero fazer rap e quero levar o rap para Portugal’”. Numa das muitas tardes a ouvir discos em casa de Serial, fez-se luz sobre o nome do grupo: “Quando eles estavam a sair de minha casa, eu disse ‘Mind the gap!’, por causa das escadas.”, recorda Serial, que tinha já dois pratos, uma mesa de mistura e muito, muito vinil: de rap, sim, mas, sobretudo, de música negra (soul, funk, jazz, blues), a mesma que os seus produtores preferidos samplavam do outro lado do Atlântico. Negra, mas não só: a veia inventiva e heterodoxa de Serial sempre passou também pelo modo como re-trabalhou não só peças dos B. T. Express, Kleeer, Gloria Scott, Roberta Flack ou Teddy Pendergrass (matéria prima tradicionalmente samplada no hip-hop), mas também paragens bem mais inusitadas e refrescantes, dos brasileiros Erasmo Carlos e Carla Nunes, por exemplo, ao compositor americano Angelo Badalamenti (conhecido pelos seus scores para David Lynch).

Com o dinheiro ganho com o EP e o entusiasmo da editora por trás, o trio decidiu que queria trabalhar com os melhores dos melhores, assim surgindo a ideia de contratar um técnico americano com cujo som mais se identificavam: o de Nova Iorque. “Fizemos uma pesquisa pelos créditos dos discos para encontrar um técnico que nos desse o som americano e começámos a telefonar para os estúdios. Era o Ace que telefonava da Valentim de Carvalho...”, recorda Presto. Imagine-se, nos anos 90, três miúdos agarrados ao telefone para estúdios altamente sofisticados em Nova Iorque a explicar que, em Portugal (!), no Porto (!!), havia um grupo de rap. Surreal ou não, o esforço deu resultados: meses depois, Troy Hightower aterrava em Portugal para trabalhar na mistura final de Sem Cerimónias, trazendo na bagagem um CV impressionante, como realça novamente Presto: “Ele era técnico dos EPMD, fez discos dos The Beatnuts, Onyx, misturou os Mobb Deep.

Nós queríamos beber essa cena toda de Nova Iorque!”. Tenreiro lembra-se de horas extenuantes com o americano no estúdio da Valentim de Carvalho em Paço de Arcos: “Ele passou-se logo quando chegou. Entrou no estúdio, meteram-lhe as fitas e ele desatou logo aos berros porque não tinham sido gravados tons. ‘Não há tons?! Vocês acham que hip-hop é música menor?!’”. 1997 seria o ano de lançamento de outros álbuns do rap português, como Filhos Da Rua (Black Company), Kanimambo (General D), Kom-tratake (Líderes da Nova Mensagem) ou Stellafly (Ithaka), mas nenhum se revelaria tão impactante, nem de perto de longe, como Sem Cerimónias, que chegou a ser editado, com enorme receptividade, em Espanha.

Do Porto a Nova Iorque

Álbum absolutamente clássico e definidor do rap português, Sem Cerimónias apanha os três músicos num estado de graça que, combinando ambição, ingenuidade e frescura, provavelmente nunca viriam a viver de novo, não obstante se contarem alguns excelentes trabalhos no período subsequente (alguns deles igualmente clássicos do rap português), casos de A Verdade (2000), Suspeitos do Costume (200) ou Regresso ao Futuro (2012), o seu derradeiro título. Porque — que isto fique claro — Sem Cerimónias não é relevante apenas pelo seu peso “historiográfico”, como aqueles objectos anacrónicos que avaliamos retrospectivamente com olhar ternurento, tantas vezes condescendente (é o caso de Rapública); antes, sim, por se revelar um grande disco dos pés à cabeça, ontem e hoje, quaisquer que sejam as mudanças — e têm sido tantas — que o rap tenha sofrido.

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Mind Da Gap em estúdio a gravar Sem Cerimónias. Da esquerda para a direita: Presto, Pedro Tenreiro, Troy Hightower (engenheiro de som), Serial e Raúl Ribeiro (engenheiro de som)

Começa logo na ironia meta-referencial do título: num tempo em que os rappers ainda respondiam pela designação de MC’s (Masters of Cerimonies), os MDG batiam o pé na porta e sentavam-se na nossa casa (nos nossos ouvidos) como se fosse a deles, sem (fazer) cerimónias (uma coisa também muito do Porto, essa de aparecer calorosamente a alguém). Mas em vez de se servirem, eram eles que nos davam comida, e da boa: os instrumentais que lá se ouvem, costurados num Akai SP1200, continuam intactos no seu bom gosto, combinando momentos açucarados e crus com outros melancólicos e vigorosos, o boom bap clássico a unir uns e outros, esse que Serial abraçou da escola nova-iorquina (Pete Rock, Premier, RZA, Havoc, Large Professor). E isso não obstante as cambiantes (tanto rítmicas como melódicas) que timidamente já se lhe sentem e que se viriam a confirmar em trabalhos seguintes — a título de exemplo, Tour (inscrita em A Verdade, o álbum subsequente) mostra-o já conectado (isto em 2000!) com aquilo — a electrónica funky e futurista que veio dar uma nova palete cromática ao rap — que Pharrell e Timbaland fariam nos finais de 90/início dos anos 2000, talvez a primeira vaga responsável pela aproximação do rap puro e duro à pop (até chegarmos ao aqui e agora, em que um rapper como Drake se indigna com o facto de Hotline Bling ser escolhida nos Grammys como melhor canção rap e não pop). Tenreiro não poupa nas palavras na hora de falar sobre o grande arquitecto musical do grupo: “Aquilo que eu vi no Rolando. Cheirou-me logo que ele era especial, diferente dos gajos que andavam a produzir o General D. Ele sabia, percebia a ética. Via-se que ele era apaixonado por aquilo! Basta ver um miúdo que sampla a (You Caught Me) Smilin dos Sly & the Family Stone. [referência a Dádiva]”. É também essa paixão que percorre 15 canções praticamente imaculadas, escutadas com aquela indecisão de se escolher a melhor, não obstante ainda se notar uma certa de falta de fluidez na articulação das palavras e do flow aqui e ali (a ingenuidade discursiva, que não deixa de existir, só sublinha a beleza que há na juventude das coisas no momento em que são feitas), aspecto que haveria de ser limado nos trabalhos seguintes.

Desse emblemático álbum sairiam autênticos hinos do rap português, clássicos absolutos sem os quais não faz sentido sequer falar da sua história, casos de És Como Um Don (quem escutar com atenção, reconhecerá as teclas, as cordas e os sopros da Recordar É Viver de Victor Espadinha a concorrerem para o conto noir de um gangster nascido na Sé do Porto), Falsos Amigos, Mestres Sem Cerimónias (sample de Flower Lady & Her Assistant dos The Seeds), O Mundo É Teu (óbvia citação do clássico The World Is Yours, do não menos clássico álbum Illmatic, 1994, de Nas), Coalizão — Cavaleiros Do Apocalipse (sample distorcido, psicadelizante, da Ele e Ela de Madalena Iglésias) ou, claro, Dedicatória (na qual é samplada a I Wanted It Too de Roberta Flack) — e, mais do que hinos, canções que provavam, depois do incontornável Nadar dos Black Company, a capacidade de penetração popular em Portugal do género um dia nascido no Bronx, de como um discurso que se afirmava orgulhosamente underground e anti-sistema não deixava de poder apelar às massas. Aliás, essa capacidade de comunicação, quando feita de modo emocionalmente honesto, não deixa de continuar a ser uma das valias mais bonitas da música pop, não sem os seus embaraçosos equívocos: Dedicatória, com um refrão próximo de uma autêntica “canção” no sentido tradicional (ou pop) do termo, foi, durante anos, cantada pelo público como de uma carta de amor boy meets girl se tratasse (e citada, quando os telemóveis chegaram, em tudo o que eram SMS amorosas), quando, na verdade, Ace e Presto desfiavam nela a história do hip-hop e lhe declaravam amor eterno.

Mas isso, essa naif confusão, não deixa de ser comovente, e só comprova a dimensão emocionalmente tocante da música dos MDG, que, no mesmo disco, oferecem uma significativa variedade de atmosferas: na funkérrima Nortesul, por exemplo, encontramo-los a eles e aos Da Weasel (que lançavam, nesse mesmo ano, 3.º Capítulo) a celebrarem a unidade em vez da diferença, Portugal em vez de “Porto” e “Lisboa” (à data, dizia-se, e o próprio Ace o defendia em entrevista ao suplemento Pop Rock do PÚBLICO de 1 de Março de 95, que, em termos do rap que se fazia, Lisboa estava para Los Angeles como o Porto estava para Nova Iorque), a música em vez das rivalidades. Representin’ Lovely, por seu turno, é uma ousada (e bem sucedida!) aventura de Ace a rappar em inglês (e, coisa inusitada, com vozes do próprio Troy no refrão), em registo tipicamente gangster, o mesmo de Notorious B.I.G., de quem cita explicitamente uma das suas mais célebres linhas (“Bad Boys move in silence”, da faixa Ten Crack Commandments).

O Inimigo foi vencidoComo quem?, por sua vez, constituem contra-ataque explícito à má imprensa com que o seu EP anterior tinha sido brindado, começando a segunda delas com Presto a rappar, cheio de swing: “Como o Roger Rabbit, pulas, abanas-te como o Lenny Kravitz / Faço-te uma crítica como me fez o Blitz”, referência à crítica assinada por Pedro Gonçalves (duas estrelas) ao primeiro EP no Blitz de 24 de Outubro de 1995. Aí se lia que os MDG não eram “mais do que vítimas do boom do hip-hop português, já que foram atirados para o estúdio precoce e irreflectidamente, vá-se lá saber porquê”. Rui Miguel Abreu (que chegou a remeter uma carta de resposta a Gonçalves), director da revista digital Rimas e Batidas, lembra-se desse episódio aquando do lançamento de Sem Cerimónias: “O Blitz já tinha ouvido o disco e essa menção. Quando o Pedro Gonçalves chegou à entrevista e poisou o gravador em cima da mesa, eu puxo do meu gravador e coloco-o ao lado. E ele pergunta-me: ‘Também estás a gravar a entrevista?!’ E o Ace diz: ‘Nós queremos ter a certeza de que aquilo que vocês vão escrever no jornal é aquilo que nós dissemos!”. A realidade é que, à data, Sem Cerimónias, hoje objecto obrigatório em qualquer compêndio da música portuguesa, não teve, segundo os elementos dos MDG, a melhor atenção jornalística, algo que se fez acompanhar de um certo olhar provinciano de quem, na capital, olhava de lado para o que se fazia a norte do país (de onde, um ano antes, saíra já o mítico EP Expresso do Submundo, dos Dealema).

A mágoa relativamente a esses tempos ainda está latente nas palavras de Ace: “Durante muito tempo, os MDG, por serem do Porto, por serem brancos, por não serem do ghetto ou serem de classe média, tiveram sempre a crítica em cima. Na altura, diziam-se coisas estúpidas como: ‘Este devia levar da mãe em pequeno para estar tão chateado a cantar!’.

Hoje, ninguém faz uma crítica pessoal ao Sam The Kid, fala-se realmente de música”. Se essa mágoa é compreensível, também é fruto de uma susceptibilidade, de uma fina sensibilidade própria de quem está a começar, nem sempre se apercebendo do verdadeiro alcance de uma apreciação. De facto, lendo-se a imprensa à época, constata-se que a recepção, além de atenta (muitas entrevistas a diversas publicações), é, até, positiva (muito positiva a partir de A Verdade), se bem que denote um certo desconhecimento relativamente ao estado da arte (nomeadamente, do rap americano e francês), circunstância natural quando a própria “arte” dava os primeiros passos — com algumas excepções (caso de Rui Miguel Abreu), não existia uma “crítica de hip-hop” sólida em Portugal (como hoje começa a ser visível), algo observável na insistência nas referências à “replicação dos modelos americanos” a propósito do rap então feito (quando tal não só é normal como transversal a outros géneros, sem que isso constitua factor de desmérito) ou na depreciação de um alegado “purismo”, como se o rap não pudesse valer por si só e apenas fosse valorizável quando fundido com outras estéticas (Dedicatória também fala sobre isto).

No suplemento Sons do PÚBLICO de 3 de Outubro de 1997, Luís Maio, atribuindo nota 7 ao álbum, argumentava que constituía “um lance de maior ousadia ideológica no xadrez até aqui bastante pacato do rap em português. (.) As programações e os samplers denotam já outra desenvoltura e o jazzístico Bem-vindo como o cinematográfico És Como Um Don ostentam um apuro sonoro que constitui um salto qualitativo para o hip hop de produção local”. Por seu lado, Ricardo Saló (que já elogiara moderadamente o EP com os Blind Zero) considerava, em artigo assinado no Expresso em 27 de Novembro de 97, que se estava perante “um projecto repleto de óptimas ideias de trabalhado mas manietado pelos limites estéticos da ideia de pureza que, paradoxalmente, desencadeia a sua acção. (.)

Sem Cerimónias contribui para o ponto de vista aqui defendido (.): o hip-hop feito em Portugal andaria bem melhor (.) se os ‘rappers’ não encarassem a ocupação integral do espaço disponibilizado pelo ‘disc-jockey’ como uma obrigação”. Em crítica (duas estrelas) saída no Diário de Notícias de 4 de outubro de 97, Nuno Galopim (que falara do EP com os Blind Zero como uma “genial colaboração”) sublinhava, depois de elogiar a atmosfera instrumental do álbum, que “as palavras vêem-se forçadas a entrar numa rede apertada, martirizando na forma o que de interessante encontramos no conteúdo. (.) com o espaço de respiração mínimo aqui cedido à palavra (.), não há quem consiga escutar o que aqui se canta”. Serial lamenta a disparidade do reconhecimento granjeado: “O disco foi editado em Espanha com  grande sucesso, foi muito mais reconhecido lá do que cá!  Quando tocávamos com espanhóis, diziam sempre que o disco era um marco em Espanha”. Presto reitera o quanto isso os magoou: “Diziam que éramos uns putos que só tínhamos sido editados por causa do Rapública, que não tínhamos futuro. Diziam que as rimas eram insípidas, que os beats estavam mal feitos, que não tínhamos noção do tem, po. Nós olhávamos para aquilo e ficávamos fulos”.

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Sem Cerimónias, obra também visualmente memorável pela sua artwork (a composição e a cor da fotografia da capa, autoria da fotógrafa Adriana Oliveira, de par com o visual moderno e disruptivo, ainda hoje coolzíssimo, dos três elementos, são todo um achado), não descolou imediatamente junto do público, antes vindo a beneficiar, como assinala Tenreiro, de um “efeito em cascata”: “Ao fim de um ano, o disco tinha vendido, e este número é muito mau para a altura, 956 cópias. Desata a vender depois do A Verdade. E A Verdade multiplica vendas depois do Suspeitos do Costume”. De 1997 para a frente, os MDG viriam a conhecer uma carreira com altos e baixos junto do público, algum do qual (o mais purista) passando a entender, a determinada altura (talvez aquando do lançamento do single Tilhas? São Sapatilhas, de Edição Ilimitada, 2006), que o grupo se havia “comercializado”, selo que nunca os incomodou em demasia, como muito lucidamente Presto confessa: “Sempre quisemos inovar, nunca ficar dentro da caixa. Sempre tentámos refrescar o nosso som, mantermo-nos actuais. Houve pessoal que deixou de ouvir MDG, mas vieram outros e o público foi-se renovando”.

O primeiro “clássico” do rap português

O certo é que a história do rap português não se faz sem o seu nome: não fossem eles e, provavelmente, muitos nomes do Porto não se lhes teriam seguido, sobretudo os de primeira e segunda geração (Dealema, Matozoo, Circuito Secreto, Triângulo Dourado, L.C.R., Capicua). E é dos MDG que brotará toda uma linha, uma “escola”, de rap do Porto, fortemente marcada por uma aguda introspecção (tantas vezes poética, dilacerante), o discurso político, o orgulho na pertença a uma cidade e a utilização do calão local (por oposição à influência do slang americano que o rap lisboeta sempre abraçou), uma escola que, embora diluída no presente (até pela reduzida quantidade de projectos actuais no Porto) e caracterizada por outras abordagens formais, é a mesma que se continua a fazer sentir nos nomes geracionalmente mais recentes de Keso, Virtus ou Minus (os grandes estetas da palavra do rap feito actualmente em português).

“Há uma espécie de ADN: a partir dos MDG, há uma linha condutora na qual se desenvolveram temáticas mais ligadas com o mental, o espiritual. Acho que isso ficou como marca registada do Porto, esse estilo mais ‘filosófico’”, assinala Ace. Capicua, rapper do Porto que atingiu uma dimensão mediática que nem os próprios MDG alcançaram, não tem dúvidas: “O Sem Cerimónias é um disco que há-de ser sempre paradigmático. Foram a primeira banda a profissionalizar-se no rap no Porto, tiveram um contrato com uma editora. Eles abriram as portas para tudo”. Berna, rapper do antigo colectivo L.C.R. (Livre Comunidade Rimática), destaca que “O maior mérito que eles tiveram foi o de interpretar a linguagem rap, que era uma cena americanizada, e fazer uma tradução fiel para aquilo que são as pessoas do Porto”.

A influência dos MDG no resto do país, nomeadamente em Lisboa (de onde sairá, um ano depois, também pela NorteSul, o segundo “clássico” do rap português, Mandachuva de Boss AC), não é menos significativa, e não haverá um grupo de rap que não os cite como influência, património que Valete sintetizaria na sua célebre canção Hall of Fame (na qual, como o nome indica, enuncia o panteão do rap português): “O primeiro clássico de hip-hop tuga chegou Sem Cerimónias / Foi quando o Porto começou a deixar Lisboa com insónias / Mind Da Gap conseguiram tirar o underground do fundo / Fácil, porque eles tinham um Serial Killer e um Ace de trunfo”.

Depois do seu Regresso ao Futuro em 2012, o grupo manteve-se discreto, lançando apenas, em 2015, Por Aí, o single daquele que deveria ser o seu trabalho seguinte. Até que, em 2016, quando nada o fazia esperar, uma estranha publicação de Serial no Facebook precipitou o fim abrupto e nada simpático do grupo. Os três elementos — hoje, e à excepção de Presto, com carreira por outras paragens (Serial nos Pro Seeds, Ace a solo e nos CRU) — nunca quiseram falar muito do assunto e nós também o dispensamos: vinte anos volvidos de um dos mais marcantes títulos da música portuguesa dos anos 90, importa é redescobrir esse disco (e outros) da auto-intitulada “Tríade Nuclear” (para quando reedições?). Sem o saberem, o título do seu derradeiro single é também todo um statement de (falsa) despedida: sim, os MDG estarão sempre “por aí”, nos nossos ouvidos, nos nossos corações.

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