Melville, ofício de filmar

Foi um dos maiores estilistas do cinema moderno, inspiração assumida para Mann, Woo ou Tarantino. Em ano de centenário do seu nascimento, a sua obra é integralmente apresentada numa imperdível retrospectiva na Festa do Cinema Francês.

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Nasceu Jean-Pierre Grumbach, Melville seria o seu nome de código quando passou à clandestinidade e se juntou à Resistência Francesa durante a Segunda Guerra. Tornar-se-ia num dos apelidos mais reverenciados do cinema mundial — posto ainda hoje amplificado pela sua morte prematura (em 1973, aos 55 anos) e por uma filmografia demasiado curta — 14 títulos nos 25 anos que decorreram entre 1946 e 1972 Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images

Melville não é apenas um estilo de cinema nem um nome de um realizador. Melville é um universo, inteiro, contido em si próprio. Os filmes que fizeram o seu nome – policiais negros, secos, austeros, tensos, enérgicos, versão cinematográfica do grande felino que se prepara para o ataque – influenciaram Michael Mann, John Woo, Quentin Tarantino. Nome tão singular ou pessoal que se torna irrepetível, inimitável, “Melville” é igual a “Godard”, “Hitchcock”, “Demy”, “Ford”. Um apelido que contém em si toda uma ideia de cinema.

E, contudo, em 1917, faz agora cem anos, Jean-Pierre não nasceu Melville. Nasceu Jean-Pierre Grumbach, e Melville seria o seu nome de código quando passou à clandestinidade e se juntou à Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial. Não pelo cinema (que já amava de paixão) mas pela literatura – por Herman, o de Moby Dick, autor que dizia admirar mais do que qualquer outro. Quando decidiu passar de espectador a cineasta, após a guerra, Grumbach assumiu-se Melville, permanentemente. O nome de código da Resistência tornar-se-ia num dos apelidos mais reverenciados do cinema mundial – posto ainda hoje amplificado pela sua morte prematura (em 1973, aos 55 anos de idade) e por uma filmografia demasiado curta – 14 títulos apenas nos 25 anos que decorreram entre 1946 e 1972.

Vamos vê-los, todos, a partir de amanhã, naquela que é uma das retrospectivas-chave do ano cinéfilo, a decorrer na Cinemateca Portuguesa até dia 18 de Outubro, integrada na Festa do Cinema Francês mas também nas comemorações do centenário do nascimento do realizador (iniciadas em Abril em Havana e Los Angeles). Vários dos filmes serão exibidos em cópias restauradas. São obras imortais de um cineasta inconfundível que ninguém consegue igualar (e muitos tentaram). E se Melville é o que é, é-o porque os seus filmes surgiram no tempo certo – no pós-guerra aberto a todas as dúvidas e a todos os questionamentos. Anthony Lane, na New Yorker, citava em Maio último uma entrevista em que o realizador dizia não saber o que seria feito dos seus filmes 50 anos mais tarde. Laurent Grousset, sobrinho e herdeiro (Melville morreu sem filhos), mostra-se feliz por o nome ainda dizer tanto a tanta gente, surpreendido até que em alguns países ele ainda seja recordado – “nos EUA não, porque ele sempre teve aí uma projecção enorme. Mas em Espanha, sim, fiquei completamente abananado. Para lá de Madrid, nove ou dez cidades onde vai haver uma retrospectiva, dois livros importantes sobre o meu tio? É formidável.” Mas lembra que Melville uma vez lhe disse que, um dia, quando já não fosse vivo, Cai a Noite sobre a Cidade (1972), o último filme que realizou e que foi na altura mal recebido pela crítica, seria enfim considerado um bom filme. (Profético: críticos como Serge Daney ou Louis Skorecki não hesitam em considerá-lo, hoje, uma obra-prima.)

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Alain Delon na obra-prima zen que é Ofício de Matar

“Detesto Cai a Noite sobre a Cidade”, diz Grousset, por Skype da residência madrilena onde vai supervisionando as actividades da Fundação Jean-Pierre Melville, lançada no início do ano com o primo Rémy Grumbach para preservar e divulgar a obra do tio. “Não porque o filme não tenha cenas sublimes! Acredito que foi esse filme a matar o meu tio – estou convencido que o seu fracasso foi uma das razões do seu terceiro e último AVC.” E Grousset saberá do que fala – durante a nossa conversa, recordará os longos jantares em casa de Melville, mesmo por cima dos estúdios Jenner, base de trabalho do realizador. “Íamos jantar lá a casa, com o meu primo Rémy e as nossas esposas, e a certa altura olhávamos pela janela e víamos o sol a nascer. Não tínhamos dado pela noite passar. Ficávamos horas a ouvi-lo contar histórias, e se ele era um grande contador de histórias!”.

Grousset, que fez carreira como publicitário mas passou também pela televisão, pela escrita, pelo cinema, evoca a primeira câmara que o tio teve, uma Pathé-Baby de 1924 que “está ali numa prateleira mas que daqui não se consegue ver.” A presença em sua casa da câmara reflecte a sua proximidade com Melville. “Foi ele quem me apresentou ao cinema, ao jazz, à música, ao circo. Sempre fui muito próximo dele, mas oficialmente, trabalhei muito pouco com ele. Comecei como assistente na primeira versão do Segundo Fôlego, em 1964, que foi interrompida porque ao fim de três-quatro semanas de trabalho o produtor deixou de pagar à equipa. O casting mudou, e quando o filme recomeçou com outro produtor eu já tinha aceite um cargo de assistente noutra produção.” Mas a proximidade familiar nunca se perdeu. “Havia momentos em que eu era praticamente o seu assistente particular”, “câmara de eco” sobre actores, ideias, projectos. O universo Melville, percebe-se, não lhe é estranho:

“Falou-se muito do realismo de Melville, mas é falso!”, diz peremptoriamente. “Jean-Pierre detestava o realismo. 'É realismo que quer? Então vá ver um documentário! O cinema não é o realismo, não é a vida.'. O realismo dele era o cinema. Se quiser, a sua visão do mundo é aquela que se tem quando se olha pelo óculo de uma câmara: o mundo inteiro desaparece, só existe aquilo que se vê no enquadramento. E ele tinha essa visão, mesmo sem câmara. Ele pensava cinema, dormia cinema, via cinema, vivia cinema.” Grousset evoca a semana de licença em Londres que Melville teve antes de se juntar às forças de libertação do general de Gaulle – “nessa semana ele viu 27 filmes! Nem com a guerra parou!”.

A guerra, a experiência da Segunda Guerra Mundial em que combateu na Resistência, tornou-se no leme e no lema que norteou as suas histórias. O código de honra, a lealdade, a camaradagem, o companheirismo – tudo heranças do seu tempo de guerra, que recriou de modo muito íntimo no seu filme mais pessoal, O Exército das Sombras (1967), adaptação do romance de Joseph Kessel sobre o quotidiano dos resistentes. “Ele tinha uma nostalgia enorme da guerra,” diz Grousset. “Dizia-me que era a sua melhor memória, porque foi onde encontrou pessoas reais, homens a sério, gente de quem se tornou amigo. Ele viu tudo. E tudo isso se reencontra nos seus filmes, sejam eles de gangsters ou de guerra.” Todos eles são, escusado será dizer, filmes de homens v– não por nenhum marialvismo gratuito ou abusivo ou provocador, apenas porque eram essas as regras do jogo como ele o aprendera, conhecera e entendera. “A magia de Jean-Pierre estava no modo como descrevia os homens. Era um ser solitário, um homem da noite. Não gostava de multidões nem de se misturar com as pessoas. Tinha o seu clã, a sua família, os seus amigos próximos, e ficava por aí. Mas sim, esse código de honra vem da guerra. Disse-nos uma vez que, na véspera da batalha de Monte Cassino, jurou a si próprio que, se sobrevivesse, teria um estúdio seu. E teve-o.”

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O Denunciante (1962), um dos filmes de cabeceira de Tarantino

A referência é aos estúdios Jenner, que Melville comprou em 1953 com os honorários de realizador de Quando Leres Esta Carta (o único filme de encomenda que assinou, com o intuito expresso de financiar a aquisição, e que não é por isso considerado parte da obra oficial) e por cima dos quais vivia. O realizador mandou construir uma sala de projecção, “enorme, decorada a vermelho”, onde via em média 4 a 5 filmes por dia (quando não estava a rodar, bem entendido), ao ponto de ter montado um pequeno apartamento contíguo para o projeccionista começar a trabalhar de manhã. “Ele adorava descer do apartamento para a sala de projecção, de pijama, com uma chávena de café com leite, para começar a ver filmes de manhã cedo.”

Os Jenner foram a base de trabalho de Melville durante quase 15 anos, até um incêndio os destruir em 1967. Mas foi aí, a partir do seu primeiro “verdadeiro” Melville noir, primeiro filme rodado nos estúdios, primeiro filme onde tinha absoluto controlo da produção,que o seu estilo, lacónico, preciso, depurado, se começa a precisar. Bob le flambeur (1955), a história de um golpe à caixa de um casino, é o ponto de partida do Melville clássico; Grousset confirma que as três longas anteriores – Le Silence de la mer (1947, adaptado de Vercors), Les Enfants terribles (1950, adaptado de Cocteau) e Quando Leres Esta Carta (1953) – que pouco têm em comum com o que se seguiria, eram filmes de “procura”. “Mas não se esqueça que, quando realizou o seu primeiro filme, em 1946, ele não fazia ideia do que era um plateau de cinema. Ele nunca tinha seguido estudos de cinema, nunca tinha sido assistente de ninguém, nunca tinha estado num estúdio. Mas tinha visto centenas de filmes, e foi isso que lhe deu a bagagem que lhe permitiu fazer um primeiro filme e depois ir por aí fora.”

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L’armée des ombres/O Exército das Sombras (1969)
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O Círculo Vermelho (1970)

De Bob le flambeur foi um ápice até à sequência de obras-primas realizadas com os actores-fétiche: primeiro Jean-Paul Belmondo (em Amor Proibido, 1961; O Denunciante, 1962; e Um Homem de Confiança, 1963), depois Lino Ventura (O Segundo Fôlego, 1966; O Exército das Sombras, 1969); finalmente Alain Delon, a partir da obra-prima zen que é Ofício de Matar (1967), seguido de O Círculo Vermelho (1970) e Cai a Noite sobre a Cidade (1972).

Melville estava já fora do tempo quando fez as suas obras-primas, num período em que a Nouvelle Vague (que o aclamou inicialmente como um herói e como um antecessor) e as suas sequelas haviam tomado conta da paisagem. O seu noir pós-guerra criou certamente seguidores e imitadores em França – Jacques Deray, Henri Verneuil, José Giovanni tentaram emulá-lo com maior ou menor felicidade – mas foi internacionalmente que as suas histórias de polícias e ladrões à moda antiga mais ressoaram: Michael Mann foi quem chegou mais perto com noirs urbanos como O Ladrão Profissional (1981) ou Heat – Cidade sob Pressão (1995), os filmes de Hong Kong de John Woo veneram ao altar de Melville, Quentin Tarantino considera O Denunciante um dos seus filmes de cabeceira. E a verdade é que os filmes de Melville continuam espantosamente modernos. Talvez porque, já quando foram filmados, estivessem fora de tempo. Talvez por isso, eles estejam permanentemente no tempo certo. E nunca é tarde para descobrir Melville.

A retrospectiva integral de Jean-Pierre Melville na Cinemateca inicia-se a 7 de Outubro pelas 18h30 com uma conferência sobre o realizador com a presença de Laurent Grousset. Apresentar-se-ão Le Silence de la mer (7, 21h30, e 10, 18h30); Les enfants terribles antecedido da curta 24 heures dans la vie d’un clown (9, 19h, e 10, 22h); Quando Leres Esta Carta (9, 21h30, e 11, 18h30); Bob le flambeur (10, 19h, e 11, 22h); Deux hommes dans Manhattan (10, 21h30, e 12, 18h30); Léon Morin, prêtre/Amor Proibido (11, 15h30, e 12, 22h); Le Doulos/O Denunciante (11, 19h00, e 13, 18h30); L’aîné des Ferchaux/Um Homem de Confiança (11, 21h30, e 13, 22h); Le deuxième souffle/O Segundo Fôlego (12, 15h30, e 14, 18h30); Le samouraï/Ofício de Matar (12, 19h, e 17, 18h30); L’armée des ombres/O Exército das Sombras (12, 21h30, e 17, 22h); Le cercle rouge/O Círculo Vermelho (13, 21h30, e 18, 18h30); Un flic/Cai a Noite sobre a Cidade (14, 21h30, e 18, 22h). O programa pode ser consultado nos sites www.cinemateca.pt e www.festadocinemafrances.com

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