Admirável Língua Nova (Parte IV)

Senhores acordistas, por paradoxal que possa parecer, é com o vosso Acordo que nasce uma profusão de erros nas consoantes mudas – eis mais um pretenso problema que o Acordo veio resolver, mas que apenas agudizou.

Observe o leitor ou a leitora o seguinte passo de um livro publicado em 2011.¹

“Contar uma história bem contada, fazer um texto ficar filé. E como é que a gente faz um texto ficar filé? Queimando as pestanas no estudo da parada da literatura. O vô do Tom pediu pra gente contar a tal história do nosso reino, mas tudo o que a gente fez até agora é só garranchos, só xaboque que a gente escreve nas coxas... A gente escreve mal pra chuchu... A parada só entra areia... Mó xaropada...”

Creio que não precisarei de lhe dizer se se trata de um texto em português de Portugal (ou, se preferir, em português europeu) ou em português do Brasil. Não há – felizmente! – acordo ortográfico que ate com uma corda esta diversidade. Não deixa de ser curioso que, no passo transcrito acima, a aplicação do Acordo não altere rigorosamente nada, ou seja, não crie um átomo de aproximação entre o português do Brasil e o português de Portugal – o que é per se bem ilustrativo da particular inutilidade desse documento de engenharia verbal quanto ao seu propósito principal. O que é diferente é irreconciliavelmente diferente. Tal diversidade (ortográfica, sintáctica, prosódica, lexical, semântica) é, ademais, prova viva da riqueza da nossa língua.

Sucede que o Acordo é aprovado (é importante ler estes documentos oficiais…) porque “constitui um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa e para o seu prestígio internacional”. Acaso alguém deu conta de que o Acordo constituiu um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa?, de que a nossa língua adquiriu mais prestígio internacional com o dito? Estará o prestígio internacional do inglês (que tem dezoito variantes) pelas ruas da amargura? O francês, coitado, tem quinze, e o castelhano, pobre dele, tem vinte e uma.

O argumento da unificação é de uma colossal ignorância – aquilo que se tentou foi apenas uma ligeira aproximação no plano da ortografia. Citando a Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa: “As palavras afectadas por tal supressão [das chamadas ‘consoantes mudas’] representam 0,54% do vocabulário geral da língua […] .» Mas essas cinquenta e quatro centésimas (mais as alterações de hífenes e acentos) podem certamente operar maravilhas – não é difícil imaginar que os Brasileiros acorrerão num frenesi às livrarias para ler Camões e Pessoa acordizados, porque “hei-de” perde o hífen e “actor” se passa a escrever “ator”, e que os Portugueses passarão a ler Guimarães Rosa e Machado de Assis como novidades fresquinhas, excitados que estão com a perda das ditas consoantes mudas.

O próprio Acordo cai na tentação de usar a palavra mágica “unificação”, para logo de seguida se contradizer: “[I]mporta, pois, consagrar uma versão de unificação ortográfica que fixe e delimite as diferenças actualmente [nem a Nota Explicativa do Acordo segue o Acordo?!] existentes.” É, portanto, para unificar, para tornar único, fixando e delimitando as diferenças – brilhante! Quem é novato nestas andanças do Acordo ficará naturalmente confuso. Quem não é… conhece o espírito da coisa e já nada nele o espanta.

A coisa desce a abismos inexcedíveis de absurdo com as conclusões da investigação de Maria Regina Rocha, publicada neste jornal. Com base no estudo das palavras registadas no Portal da Língua Portuguesa, “exceptuando as palavras com alteração do hífen, as palavras graves acentuadas no Brasil e não em Portugal (como idéia – ideia) e as palavras com trema (pelo seu número residual e por tais situações afectarem sobretudo a ortografia brasileira) […] havia 2691 palavras que se escreviam de forma diferente e que se mantêm diferentes […] havia 569 palavras diferentes que se tornam iguais […] e havia 1235 palavras iguais que se tornam diferentes”.

Tome nota, caro leitor ou cara leitora: havia 569 palavras diferentes que se tornam iguais e 1235 que eram iguais e se tornam diferentes – o Desacordo é mais do dobro do Acordo.

Isto é sério? Quem fez e assinou o “Acordo” não sabia isto? Quem fez e assinou o “Acordo” não previu as consequências? Ignoravam que, com o decreto do critério da pronúncia, o Brasil – precisamente por pronunciar (em muitos casos, ao contrário do português de Portugal) o c e o p em muitos vocábulos – continuaria a escrever “decepção”, “recepção” (oiçam um brasileiro pronunciar tais palavras, senhores!), entre tantos outros, tornando-se assim o igual inevitavelmente desigual? Voltando aos números da investigação de Maria Regina Rocha: “[N]o Brasil, são 1235 as palavras em que se mantém essa consoante, enquanto em Portugal e nos restantes Países de Língua Oficial Portuguesa são apenas 247!!! Em Portugal, altera-se a ortografia fazendo desaparecer as referidas consoantes e, afinal, no Brasil, essa ortografia de cariz etimológico mantém-se!!!”

Por último, sublinhe-se que dentro da nova lista do Desacordo, foram fabricadas palavras que não existiam e que apenas ao português de Portugal couberam em sorte: “[S]ão 200 as palavras inventadas, que não existiam e passam a ser exclusivas da norma ortográfica em Portugal. Alguns exemplos: em Portugal, com o Acordo, passa obrigatoriamente a escrever-se aceção, anticoncetivo, conceção, confeção, contraceção, deceção, deteção, impercetível, enquanto no Brasil se escreve obrigatoriamente acepção, anticonceptivo, concepção, confecção, contracepção, decepção, detecção, imperceptível.”

Quando os objectivos de determinada escolha não são alcançados e, pior do que isso, quando depois dessa escolha, ficamos mais longe desses objectivos do que estávamos antes, persistir nessa escolha passa a ser, na hipótese mais benigna, um acto de orgulho irracional – de autoridade pela autoridade. Sobre isso, não admitir sequer a discussão de tal opção com a consequente possibilidade de revogação da mesma é, no mínimo, pouco democrático.

Querem fomentar o conhecimento das variantes da língua portuguesa entre os falantes e escreventes da mesma? Dediquem-se a criar, paciente e laboriosamente, um extenso e rigoroso dicionário, pejado de abonações literárias, com as diferentes palavras que usamos para os mesmos conceitos e os diferentes significados que damos às mesmas palavras.

Demonstrada a fraude da aproximação (por favor, caros acordistas, não useis o conceito de “unificação”) de ortografias, que sobrou? Um apelo delico-doce. Afinal, foi tudo feito por amor às criancinhas. O documento oficial de defesa do Acordo, a Nota Explicativa que acompanha o mesmo, descreve-nos o horror que infligíamos às pobres crianças: “De facto, como é que uma criança de 6-7 anos pode compreender que em palavras como concepção, excepção, recepção, a consoante não articulada é um p, ao passo que em vocábulos como correcção, direcção, objecção, tal consoante é um c? Só à custa de um enorme esforço de memorização que poderá ser vantajosamente canalizado para outras áreas da aprendizagem da língua.” Que estudos, que metodologia, que base científica apresenta a Nota Explicativa para sustentar tal opinião? Zero. (Esperemos que não seja com este zelo que se façam os programas de Matemática, História, Filosofia.)

Fica por esclarecer por que insondáveis desígnios não se eliminou então o h inicial, não se uniformizou a lista de palavras começadas por ch e por x, e, de caminho, não se decidiu ou, pelo menos, sugeriu que outras línguas, sem áreas de enorme esforço de memorização, poderão as crianças aprender.

Sucede que não se procede a uma obra de mutilação das raízes latinas, da etimologia, da lógica da língua (destruição da coerência e do significado do hífen nas locuções e desagregação de famílias de palavras) a pensar nas crianças de seis e sete anos. Mas admitamos, por mero exercício teórico, que tal desiderato seria suficiente para fazer o Acordo. Saberão os acordistas que os erros que ocorrem com maior frequência nas gerações que aprenderam a língua portuguesa sem este Acordo nunca foram os das ditas “consoantes mudas”? Quanto ao mais, nunca vi prontuário ou livro sobre língua que incluísse nos erros mais frequentes os exemplos consagrados na Nota Explicativa: concepção, excepção, recepção, correcção, direcção, objecção. Conclusão: que feito extraordinário, que magníficos professores, que magníficos alunos, que “enorme esforço” fizeram milhões de portugueses (e não só!) para escrever acertada e perenemente “adoptar” em vez de “adotar”, “adopção” em vez de “adoção”, “acção” em vez de “ação”, “actua” em vez de “atua”, “excepcional” em vez de “excecional”, “directo” em vez de “direto”, “Egipto” em vez de “Egito”…

Que erros ocorriam e ocorrem mais: os das consoantes mudas (que não me lembro de encontrar uma só vez) ou de “juniores” e “seniores” escritos com o inexistente acento, ou da conjugação do verbo intervir, ou da pluralização do verbo haver com sentido de existir, ou da confusão do “à” com “há”, ou a caterva de erros de “comeste” e “comes-te” e semelhante jaez?

Senhores acordistas, por paradoxal que possa parecer, é com o vosso Acordo que nasce uma profusão de erros nas consoantes mudas – eis mais um pretenso problema que o Acordo veio resolver, mas que apenas agudizou (ou, mais bem dito, criou, porque não existia antes). É com o vosso Acordo que os dicionários e prontuários começaram a divergir até à exaustão quanto àquilo que era um código perfeitamente estável: as consoantes mudas, evidentemente, e ainda os hífenes nas locuções. (Assuntos escalpelizados no artigo anterior.) Há (e são tantos!!!) quem siga o Acordo e escreva inúmeras consoantes mudas (como um respeitável cronista da última página deste jornal que escreve com o Acordo, mas só adopta meio Acordo); há (e são tantos!!!) quem siga o Acordo e elida pretensas consoantes mudas (a colecção que a página dos Tradutores contra o Acordo Ortográfico vem acumulando nesta matéria seria só por si motivo para decretar luto nacional pela língua portuguesa); e há quem não siga o Acordo, mas que, de tão contaminado com a leitura de textos acordizados e a obrigatoriedade de escrever com o dito, tenha, pela primeira vez, passado a escrever palavras como “noturno”. (Já ouvi mais do que um escrevente afirmar: “Com esta história do Acordo e de ser obrigado a escrever com o Acordo em determinados âmbitos, por vezes, já nem sei como escrevia tal e tal palavra antes.”) Quem tiver olhos para ver que veja…

Dirão os leitores mais cépticos: “Mas não é possível que tão sábias figuras tenham decretado algo tão incompetente! Tem de haver motivos mais profundos bem escondidos algures. Talvez esse absurdo seja só aparente.” O segredo talvez resida em esse absurdo ser tão facilmente observável – há certamente algo que não estamos a ver… como a magnífica roupa nova do rei… que ia nu. 

¹Juva Batella, A Língua de Fora — Esplêndida Fábula de Peripécias, "de Repentes" & Reencontros. Rio de Janeiro: ed. Vieira & Lent, p. 48. A obra foi seleccionada em 2013 pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola. Foi editada neste ano, em Portugal, com o título A Língua de Fora, pela Penguin Random House.

(Continua)

Textos anteriores: Admirável Língua Nova, parte I, parte II e parte III

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