Em alguns postos, os diplomatas já nem conseguem arquivar os telegramas

O novo secretário-geral do MNE quer dar ao seu cargo uma nova dimensão política, recuperando uma tradição que se perdeu nos últimos 30 anos. E promete repetir “as vezes que forem necessárias" o apelo para que os diplomatas voltem aos "mínimos indispensáveis”.

Foto
Mendonça e Moura (à direita) era embaixador de Portugal junto da ONU DR

A “pungente carência” de recursos humanos do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) é tal que alguns postos já “deixaram de fazer qualquer arquivo”, disse o embaixador Álvaro Mendonça e Moura, que acaba de tomar posse como novo secretário-geral das Necessidades, numa longa intervenção interna dirigida ao corpo diplomático.

Mendonça e Moura, que iniciou as novas funções esta segunda-feira, sucedendo à embaixadora Ana Martinho (agora conselheira diplomática do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa), promete repetir este ponto “as vezes que forem necessárias até se conseguirem os mínimos indispensáveis” para o MNE. “‘Fazer mais com menos’ é um slogan apelativo quando há gorduras supérfluas, mas atingimos um nível de escassez de recursos humanos que não permite ao ministério cuidar devidamente da globalidade do presente e preparar o futuro”, escreve o novo secretário-geral, na prática o chefe da carreira diplomática. “Relembrar que vários embaixadores não têm qualquer colaborador diplomático ajuda-nos a ter uma ideia da dimensão do problema”, disse Mendonça e Moura. A intervenção foi feita na tomada de posse, numa cerimónia interna, perante o ministro Augusto Santos Silva, os secretários de Estado do MNE, os directores-gerais, alguns embaixadores e colegas, e o texto foi mais tarde distribuído a todo o aparelho através dos canais internos.

Embaixadas low cost

O ministério não esclareceu quantas embaixadas estão hoje nessa circunstância, mas o PÚBLICO sabe que haverá pelo menos 15: Abuja, Bratislava, Harare, Helsínquia, Islamabad, Malabo, Montevideu, Nicósia, Oslo, Panamá, Ramallah, Sofia, Túnis, Windhoek e Zagreb. Quinze em 74 embaixadas bilaterais, ou seja, 20%. Estas são as “embaixadas low cost”, como ficaram conhecidas no tempo em que Paulo Portas foi ministro dos Negócios Estrangeiros, altura em que se defendeu o modelo de “um embaixador com um portátil, sem carro de serviço, nem número dois”, resume um diplomata.

Mendonça e Moura — que era embaixador de Portugal junto da ONU quando foi convidado para o novo cargo este Verão e é considerado por muitos “o diplomata modelo” — contou que ele próprio sentiu na pele o problema da “pungente carência de recursos”: “Vivi-a com particular e dolorosa intensidade à minha chegada a Nova Iorque e tenho ouvido de inúmeros colegas e demais funcionários na Secretaria de Estado e em diversos postos relatos muito semelhantes.” E acrescentou: “Os números que me foram apresentados relativos à última meia dúzia de anos são assustadores e esta evolução terá de ser rápida e substancialmente invertida se quisermos que o ministério possa desempenhar capazmente o seu papel.”

As novas funções

Dos 210 lugares de secretários de embaixada, a posição logo acima de adido (o nível de entrada na carreira), quase metade estão vagos, sabe o PÚBLICO. É aqui, na base da pirâmide, que o problema da “pungente carência” é mais sentido, defendem diplomatas contactados.

Ao longo da última década, os diplomatas mais novos ganharam experiência e os mais experientes foram promovidos, ao mesmo tempo que o acesso à carreira diminuiu e, em cima disso, em 2011 o Governo PSD/CDS-PP fez cortes substanciais. Está a decorrer um concurso para 30 vagas de adidos, que deverão entrar em 2018, informa o gabinete de imprensa do MNE. O último concurso de ingresso na carreira foi em 2015.

Mendonça e Moura deixou também claro que quer voltar a dar um perfil político ao seu cargo, transformado numa função sobretudo de gestão e administração desde 1974, mas em particular desde a extinção da autonomia da direcção-geral dos serviços administrativos nos anos 1980. Os dois ministros dos Negócios Estrangeiros de Cavaco Silva, Pedro Pires de Miranda e João de Deus Pinheiro foram os primeiros a quebrar a prática de envolver o secretário-geral nas questões políticas do ministério.

É neste contexto que se encaixam as palavras de Mendonça e Moura e as "novas funções" que quer dar ao seu cargo, uma ideia repetida na tomada de posse. Os desafios de hoje, disse o novo secretário-geral, "exigem uma nova e assumida coordenação estratégica" que permita ao ministério "apresentar ao poder político" uma visão "renovada, integrada e ousada". E isto, sublinhou, tentando "copiar os países nórdicos na forma como se organizam para compatibilizar a vida profissional e a vida pessoal em vez de valorizar absurdamente as longas horas passadas no local físico de trabalho independentemente dos resultados concretos daí decorrentes".

Contactado pelo PÚBLICO, Mendonça e Moura optou por não prestar declarações.

Notícia corrigida: retirado Praga da lista de embaixadas sem número dois, uma vez que em 2016 foi enviada para essa embaixada a diplomata Graça Maria Araújo Fonseca, na categoria de primeira-secretária.

Sugerir correcção
Ler 5 comentários