A chanceler começou bem

Por mais críticos que sejam os seus parceiros da CDU e da CSU, em Talin a chanceler alemã conseguiu manter-se ela própria.

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1. Não é num jantar informal que os líderes europeus vão entender-se, ou desentender-se, sobre o que deve ser a Europa no pós-crise e num mundo em crescente desordem, que desafia os seus valores e os seus interesses. Mesmo assim, a cimeira informal de Talin era, digamos assim, um primeiro retrato da Europa depois das eleições alemãs e depois de o Presidente francês ter apresentado a sua visão do futuro da Europa (não foi o único mas foi certamente o que atraiu mais atenção). O debate terá de continuar nas cimeiras que se aproximam, em Outubro, em Novembro (informal) e em Dezembro, onde essa agenda vai começar a ser testada. O facto de os líderes terem encarregado Donald Tusk de apresentar um guião com os próximos passos não é muito promissor. A experiência mostra que, de cada vez que a chanceler incumbiu Tusk de preparar um “roadmap”, foi apenas para ganhar tempo e remetê-lo para a gaveta. Além disso, a Comissão tem o seu próprio calendário de medidas já prontas para apresentar ao Conselho Europeu, dispensando esta aparente duplicação. Mesmo assim, a chanceler não se colocou numa posição defensiva, tendo em vista os resultados das eleições alemãs, que não lhe prometem uma vida fácil. Deu o sinal político que era preciso: considerou o discurso do Presidente francês como uma boa base de trabalho. “France is back”, disse ela em inglês. Normalmente, a chanceler não diz as coisas por acaso. Talvez preciso ainda mais hoje de um parceiro francês ambicioso e determinado, porque isso pode ajudá-la a colocar o debate sobre a Europa onde ela quer, e não nos termos em que o FDP, seu eventual parceiro de coligação, gostaria. O eixo Paris-Berlim, foi, é e continuará a ser a base da integração europeia em todas as suas dimensões. A crise vivida nos últimos oito anos trouxe à luz um enorme desequilíbrio de poder entre os dois países. A elite alemã, ou parte dela, chegou a ter o sonho de uma Europa “unipolar”, com a Alemanha no centro. Teria sido um enorme factor de perturbação.

As coisas entre ela e Macron começaram bem. A perspectiva de ambos era encontrarem-se a meio do caminho, em torno de um compromisso no qual uma maioria de países se poderia também rever. As eleições baralharam o jogo, mas não vale a pena subestimar a chanceler. O Presidente francês virou a mesa, com um discurso profundamente europeísta, contra a corrente da timidez e da falta de coragem dos líderes europeus para defender a Europa diante de eleitores cada vez mais cépticos. Quis virar a direcção do debate. Merkel saudou-o por causa disso. Não será fácil.

2. Alguns países de Leste, e não apenas a Polónia e a Hungria, atravessam uma fase de ressaca europeia, que os torna alérgicos a qualquer sinal de mais integração. Mas a ideia de uma Europa a várias velocidades vai ganhando terreno. A Europa é hoje uma realidade muito mais diversificada e heterogénea, obrigando a maior flexibilidade, mesmo que exista o risco de deixar esses países à deriva, tornando-os presas fáceis de outras esferas de influência. O problema maior talvez seja a oposição dos países mais ricos do Norte, que mantêm um olhar céptico e preconceituoso sobre os do Sul ou até sobre a própria França, como se pertencessem a mundos diferentes, cujos governos cederam muito facilmente à vaga contra os imigrantes e os refugiados, tentando estancar a perda de votos para os partidos populistas. Na Holanda é isto que se passa, na Dinamarca também. Na Áustria, que vai às urnas ainda este ano, os partidos centrais, incluindo o social-democrata, não têm o menor pejo de se apresentar com um discurso a roçar a xenofobia.

3. “Num dos países mais prósperos do mundo, com o mais forte tabu face à xenofobia e ao nacionalismo, e com um compromisso existencial com a integração europeia, um em cada oito eleitores votaram num partido xenófobo, eurocéptico, populista de direita”, escreve no Guardian Timothy Garton-Ash. Não é apenas uma questão económica, é uma questão cultural, que não pode ser menosprezada. As sondagens indicam que os eleitores que escolheram a AfD justificaram os seus votos com a ameaça “à língua e à cultura” alemãs. “Já não reconheço o meu país” é uma das queixas que mais se ouvem em alguns grupos sociais que se sentem ignorados pelos poderes públicos. O historiador britânico também lembra que, “ao contrário de alguns líderes de centro-direita, que viraram ainda mais à direita para atrair os votos populistas, Angela Merkel manteve-se com os pés bem assentes num centro liberal, genuíno, moderado e civilizado.” É isso que ela ainda traz à Europa. Por mais críticos que sejam os seus parceiros da CDU e da CSU, em Talin a chanceler conseguiu manter-se ela própria.

Vale a pena olhar para a evolução da direita alemã desde a fundação da República Federal, em 1949. A democracia, que os americanos ajudaram a construir, não nasceu logo perfeita, nem podia. O peso dos sectores mais conservadores da sociedade (alguns que conviveram relativamente bem com o nazismo) foi inicialmente mais forte do que hoje conseguimos imaginar. Willy Brandt, o líder histórico do SPD, chegou a ser acusado de “trair a pátria” por ter envergado a farda do exército norueguês, onde se refugiou, para libertar a Alemanha. A contestação estudantil de 1968 (tal como o Maio de 68 em França) foi um grito de revolta contra uma sociedade hierarquizada e profundamente conservadora onde era difícil respirar. Ajudou a mudar muita coisa. Deu origem a uma facção violenta que tinha como alvos os grandes patrões. Foi a excepção. A regra foi o crescimento dos movimentos pacifistas, sempre prontos a ocupar as ruas contra a presença militar americana, quando a fronteira da Guerra Fria passava por Berlim. Tudo acabou bem, quando um dos líderes da revolta estudantil, Joschka Fisher, chefe do partido Os Verdes, tomou posse do cargo de vice-chanceler da Alemanha, em 1998. A entrada da AfD no Bundestag trava, de algum modo, este longo caminho que os alemães percorreram nas últimas décadas e que começou a mudar de direcção quando a Alemanha se reunificou.

4. É preciso também olhar para onde vieram os votos. A maior parte veio dos Lander do Leste, onde, por sinal, não há refugiados, mas onde a história dos anos da guerra e do pós-guerra foi escrita pelos comunistas. Outros vieram dos sectores mais conservadores do lado ocidental, por razões porventura diferentes. Mas as sondagens mostram também uma fuga muito significativa de eleitores do SPD para a extrema-direita, maior dos que fugiram para o Die Linke ou o próprio FDP. O que isto quer dizer é que a crise do SPD é ainda mais profunda do que a da CDU. A tentação de virar à esquerda é quase irresistível. Mas os sociais-democratas, com o seu europeísmo e os seus valores, terão de perceber quando e como têm de apoiar a chanceler. Nos respectivos discursos, Macron, Juncker ou António Costa deram um espaço fora do comum à questão dos valores europeus. Colocaram esses valores no centro de um projecto que, sem eles, não tem qualquer razão de ser. Merkel diz a mesma coisa. É bom sinal.

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