O desígnio de Lisboa

A construção de um Museu da Língua Portuguesa na capital não exige um gigantesco trabalho nem um financiamento muito pesado.

De uma forma mais ou menos intensa e genuína, todos os políticos que, em minha opinião, são esclarecidos, defendem para Lisboa um fortíssimo desígnio, que passa, essencialmente, por projectar Portugal, interna e externamente, como o país, por excelência, dos Descobrimentos Marítimos, da Literatura (principalmente a Poesia) e da Diáspora de gentes e cultura por todos os continentes.

Mário Sá Carneiro, em Quasi, diz-nos: “Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,/(…)/ Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim…” E Miguel Torga, inspirado neste poema e adaptando-o à realidade nacional, afirma: “É sempre por um triz que o génio falha nesta terra. Mas falha sempre.”

Apesar de inúmeros erros que nós, portugueses, continuamos a cometer, penso ser praticamente consensual que Portugal evoluiu o suficiente para dar um salto qualitativo a curto prazo. Este artigo, escrito em pleno período de campanha para as eleições autárquicas, pretende dar um contributo para que o salto em causa, no que respeita à capital, se possa concretizar. Apresentarei duas propostas:

1.ª. Lisboa tem excelentes condições para realizar anualmente um evento cultural âncora com a duração de uma semana. Começaria a 7 de Junho, dia da assinatura do tratado de Tordesilhas, (há um original na Torre do Tombo) e terminaria a 13, dia de Santo António (o Museu Antoniano, depois de reformulado há cerca de cinco anos, ficou digno de ser visitado, apesar de não nos dar uma visão completa da espantosa cultura que António de Bulhões adquiriu em Portugal) e também dia de Pessoa. No meio destas datas (7 e 13 de Junho) está o dia de Camões, de Portugal e das Comunidades. As manifestações culturais que estas efemérides poderiam originar mostrariam a essência da especificidade da nossa cultura: Descobrimentos, Religião e Poesia.

Desenvolvi esta proposta na minha tese de doutoramento O Portugal de Miguel Torga – Um Itinerário em Casa do Orfeu Rebelde.

2.ª. Penso que Lisboa tem, também, excelentes condições para criar um Museu da Língua Portuguesa. O Novo Atlas da Língua Portuguesa (edição bilingue) e a entrevista ao Jornal de Letras (30 de Agosto a 12 de Setembro de 2017) da directora do Instituto Camões (Ana Paula Laborinho) provam à saciedade que a ocasião que a nossa língua vive justifica plenamente a construção do museu em causa. Por um lado, o português é a quinta ou sexta língua materna à escala global e é a língua mais falada no hemisfério sul; por outro, as conquistas do português não estão suficientemente solidificadas. Vejamos:

  • há ainda uma grande percentagem de angolanos e moçambicanos que não falam a língua de Camões;
  • estes dois países africanos têm fronteiras com países anglófonos (Moçambique) e francófonos (Angola);
  • finalmente, o português do Brasil pode entrar em ruptura com o de Portugal. Augusto Santos Silva alerta-nos para esse risco no prefácio do Novo Atlas da Língua Portuguesa: “A possibilidade de uma ‘deriva’ da variante brasileira face à europeia e africana, de tal dimensão que poderá colocar em causa o mínimo de intercompreensão indispensável à unidade linguística, é um risco real.”

Por motivos subjectivos, mas também objectivos, veria com profunda emoção um subtema ser contemplado pelo museu: a vida e obra dos escritores lusófonos galardoados com o Prémio Camões. Como é difícil encontrar nas nossas maiores livrarias livros de escritores brasileiros que receberam o maior galardão da literatura em língua portuguesa! Não se justificaria que a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, ou o Instituto Camões, publicassem na íntegra a obra de todos os premiados com o prémio em causa? E não seria pertinente inaugurar o museu em 2019, 20.º aniversário da primeira atribuição do prémio?

Parece-me que a construção do Museu da Língua Portuguesa não exige um gigantesco trabalho nem um financiamento muito pesado. Será que o terreno por detrás da Biblioteca Nacional não tem área suficiente para a construção de um edifício onde ficaria o núcleo duro do museu, apoiado e em estreita colaboração com a Biblioteca Nacional e com a Torre do Tombo?

Resumindo e concluindo, direi que o que Lisboa nos exige é que aproveitemos as boas condições que usufruímos actualmente para que ela seja a curto prazo aquilo a que tem direito: uma capital orgulhosamente europeia, que sabe dialogar com o país e com o mundo. E, se assim for, provaremos que os cépticos, a que Saramago se refere n’A Viagem do Elefante, não têm razão quando afirmam que “a história da humanidade é uma interminável sucessão de ocasiões perdidas”.

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