Maastricht, onde a vida corre devagar sobre duas rodas

Nesta pequena cidade do Sul da Holanda, onde até os cães andam de bicicleta, o presidente da câmara é nomeado pelo Rei. E sabe receber de braços abertos.

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Vista panorâmica da cidade de Maastricht Euku/cc

Quando me perguntam como vim parar a Maastricht e respondo que antes vivia em Londres, recebo sempre o mesmo olhar incrédulo. Como é que se muda de Londres para aqui? A pergunta faz sentido. Alguém que goste de viver em Londres dificilmente se habitua ao ritmo (ou à ausência dele) desta pequena cidade do Sul da Holanda. Mas aí é que está. Eu não gostava de viver em Londres.

Mas, afinal, quem não trocaria uma hora num metro apinhado de gente, mais 15 minutos a andar rápido (outra coisa que aprendi, andar muito rápido, sempre) para chegar ao trabalho, por uma viagem de bicicleta ou a pé que, na pior das hipóteses – leia-se, se se morar numa ponta da cidade e trabalhar na ponta oposta – demora 15 a 20 minutos? Dedos no ar?

Maastricht caiu-me no colo quando eu mais precisava dela. Alguns colegas ingleses avisaram-me do mau feitio holandês, ao qual falta a politeness britânica. E das manias esquisitas, como aquela de dar três beijos na cara. E as mulheres, que têm os bebés em casa? E que eu, que me queixava da falta de sol, também não iria encontrá-lo na Holanda.

Nada disso me preocupou. Em Maio, apanhei o avião numa Londres cinzenta e chuvosa e aterrei pouco depois em Amesterdão, onde estava sol e um calor abrasador. Afinal, aqui há sol e, como comprovei mais tarde, dias em que o termómetro chega aos 35 graus. Por mim, está óptimo. Espero pela neve no Inverno.

“Como é viver em Maastricht?”, perguntam-me agora. Eu dou exemplos. Vivi sete anos em Lisboa e a câmara municipal nunca soube de mim. Aqui todos os novos residentes são obrigados a registarem-se no município – o registo é necessário para coisas tão básicas como ter um seguro de saúde, que também é obrigatório – e por isso a câmara soube de mim mal cheguei.

Duas semanas depois recebi em casa uma carta da presidente a dar as boas-vindas, juntamente com bilhetes para a piscina municipal, o teatro, uma escola de dança. E vales de desconto para algumas lojas da cidade. E uma carta em português na qual me perguntam se trouxe o carro de Portugal e explicam que devo registá-lo. Confesso que me sinto mimada.

Com uma população de 122,4 mil habitantes (mais ou menos equiparada a de Setúbal, 121,1 mil) cada vez mais envelhecida, é natural que a camara tente agradar a quem escolhe a cidade para viver, sobretudo aos trabalhadores qualificados. Maastricht é famosa também pela universidade, sobretudo pela Faculdade de Saúde, que tem ligação ao hospital académico.

Antigamente um pólo industrial, com grandes fábricas de cerâmica, papel e vidro, a cidade berço da União Europeia (onde foi assinado o tratado que lhe deu origem, em 1992) tem hoje uma indústria assente sobretudo em serviços, hotelaria, saúde e educação. Nos últimos anos atraiu escritórios de multinacionais como a Bayer, Vodafone, Mercedes-Benz e Teleperformance, onde trabalha uma grande parte da população natural da cidade mas tambeém muitos expatriados. A taxa de desemprego ronda os 4%, ligeiramente abaixo da média nacional.

O turismo é outra das grandes fontes de riqueza da cidade que fica a dois passos da Bélgica e da Alemanha, e a menos de duas horas de distância de pelo menos cinco aeroportos. Por ano, Maastricht recebe três milhões de pessoas, atraídas pelos cerca de 1600 monumentos (é a cidade holandesa com mais monumentos) e pelo comércio local. Os mercados de rua semanais são o destino por excelência de quem quer comprar peixe fresco e flores, tecidos e muito mais. Não são os mercados de Londres dos quais, admito, tenho saudades, mas também são especiais.

A palavra ao Rei

Convidei um jornalista local para um expresso no Cafe Zuid, na esplanada virada para o rio Mosa (ou Maas na língua local, neerlandês). É um dos melhores spots no lado Este do rio, perto do complexo Ceramique, uma zona residencial onde antigamente existiam fábricas de cerâmica. Precisava que me ajudasse a compreender como funciona a política local, o que se torna difícil quando não se domina a língua – para tudo o resto, falar inglês é suficiente.

E ele explicou-me que a política local na Holanda é todo um mundo à parte, sobretudo para quem está habituado ao modelo português. Aqui, as eleições são às quartas-feiras e a explicação é simples: os locais de voto são as escolas, que não têm aulas à quarta-feira a tarde, além de que o fim-de-semana é “sagrado” para as famílias.

O voto é feito com um lápis vermelho e cada eleitor – residente no país com mais de 18 anos – tem direito a fazer uma única cruz. Se quiser, pode até tirar uma selfie (ou stemfie, como se diz por aqui) na cabine de voto e mostrar nas redes sociais o boletim preenchido, desde que não viole o segredo de voto de terceiros. Porém, não pode eleger o presidente do município onde vive. Como? Já lá vamos.

Apesar de ser considerada uma full democracy (democracia plena) no Índice de Democracia 2016 da revista The Economist - Portugal está um degrau abaixo, com uma flawed democracy (democracia imperfeita) -, a Holanda é também uma monarquia constitucional. O Rei Guilherme Alexandre não tem verdadeiro poder político mas enquanto chefe de Estado tem uma palavra a dizer na formação dos governos nacional e local.

Nos 388 municípios dispersos por este pequeno país (41 543km2, menos de metade da área total de Portugal), as eleições locais servem unicamente para eleger o conselho municipal. E o partido mais votado não é o único vencedor. Na Holanda, a palavra-chave na política é coligação - a "geringonça" é a regra, não a excepção. Não há maiorias absolutas.

O partido com mais votos recebe o número proporcional de assentos no conselho municipal, que varia consoante o tamanho do município, e escolhe os partidos com os quais pretende coligar-se para preencher todos os lugares disponíveis. Depois cada partido escolhe entre os seus membros os vereadores que irão formar o executivo.

As autárquicas decorrem a cada quatro anos, em simultâneo em todo o país. Mas o mandato do presidente da câmara (burgemeester) é de seis anos, renovável sem limites. Confuso? Pois.

Peguemos no exemplo de Maastricht. Os presidentes de câmara dos últimos 50 anos vieram de partidos da direita, os mesmos que tinham mais assentos no conselho e que estavam no poder a nível nacional. Porém, as eleições de 2014 abriram um novo capítulo na história do município, tipicamente conservador: pela primeira vez a força mais votada para o conselho foi um partido local, o Partido dos Seniores de Maastricht – o que também diz muito sobre o envelhecimento da população.

Quando o conselho iniciou os trabalhos havia já um presidente em exercício, Onno Hoes, do Partido Popular para a Liberdade e Democracia (VVD, de direita, o mesmo do então e actual primeiro-ministro Mark Rutte). Hoes fez carreira na política e o seu desempenho até deixou boa impressão nos habitantes de Maastricht. Mas é difícil dissociar o seu nome dos escândalos sexuais em que esteve envolvido e que o levaram a demitir-se em Junho de 2015, um ano antes do final do mandato.

Seguiu-se o normal processo de nomeação por estes lados – e não eleição – do sucessor: o conselho em funções traça o perfil pretendido para o presidente seguinte e cria um comité da sua confiança para conduzir os trabalhos. Os candidatos apresentam-se ao comissário da Coroa, figura com assento em cada uma das 12 províncias do país, que faz uma pré-selecção. O comité entrevista os seleccionados e recomenda dois. O conselho escolhe um, submetendo depois a escolha à aprovação do ministro do Interior e do Rei.

Quase sempre a sugestão do conselho é aprovada e o candidato é nomeado por decreto Real. Neste caso, pela primeira vez, Maastricht tem uma presidente de câmara mulher. Annemarie Penn-te Strake, advogada e ex-magistrada do Ministério Público em Haia, é a primeira presidente sem filiação partidária – embora, curiosamente, seja casada com o ex-presidente do Partido dos Seniores, que abandonou o cargo após a nomeação.

Os cidadãos podem contestar esta nomeação pedindo um referendo, o que raramente acontece. O modelo não é pacífico na sociedade holandesa, que há décadas discute se deve continuar ou não, mas a polémica não parece ser muito fracturante. Até porque o presidente não tem, na prática, poder político. Ou seja, não partem dele as decisões significativas para a cidade – estas cabem aos vereadores e ao conselho. Ele é mais um gestor, que garante o funcionamento ordeiro da câmara e dá a cara pelo município. É também o chefe da polícia e dos bombeiros, portanto responsável pela ordem e segurança públicas.

Logo um mês após as eleições, a coligação publicou o acordo que define as medidas para todo o mandato. Em áreas como o ambiente, por exemplo, Maastricht quer ser climate neutral em 2030, ou seja, neutra em termos de emissões de carbono, aproveitando a localização numa zona ainda rural, muito verde.

Além de acordos para a redução dos gastos de energia com instituições da cidade, a câmara quer fomentar ainda mais o uso da bicicleta. As estimativas indicam que cerca de 30% de todas as deslocações na cidade, num raio de 7,5km, são feitas de bicicleta. O território essencialmente plano, com um trânsito muito limitado no centro histórico, pistas cicláveis em toda a cidade e nos acessos às cidades vizinhas explicam esses números. Até os cães são levados nas bicicletas.

Não foi surpreendente descobrir que os habitantes desta que é a mais antiga cidade da Holanda são os que mais orgulho têm do sítio onde vivem, em todo o país. E os avisos que me fizeram no início continuam a não me assustar. Por exemplo, nem todos os bebés nascem em casa. O meu, pelo menos, vai nascer no hospital.

Maastricht

País: Holanda
População da cidade: 122,4 mil pessoas
Orçamento municipal (2016): 540 milhões de euros
Modelo de governo do pais: monarquia constitucional, democracia parlamentar

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