No Mezze há saudade e recomeço servidos num prato sírio

O restaurante, que nasceu pela mão da associação Pão a Pão, veio dar uma resposta à pergunta que refugiados que saíram da Síria por causa da guerra fizeram quando chegaram a Portugal: “E agora o que é que fazemos?”.

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Nuno Ferreira Santos
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Rosa Cruz ganhou novos clientes que não falam a mesma língua que ela mas, garante, “a gente cá se entende”. Compram-lhe tomates que ajudam a colorir os pratos que fascinam Maria Santos, que gere o café ali mesmo ao lado do restaurante sírio que está prestes a abrir portas. Anabela Santos fala do Mezze com a esperança de que venha a reanimar um mercado que foi ficando “cada vez mais pobrezinho”.

O Mercado de Arroios, ali aberto há 75 anos, tem um novo inquilino que tem cheiro e sabor a saudade. Do pão sírio. Da Síria. De pais, mães, irmãos, sobrinhos ou amigos que de lá não conseguiram sair por causa da guerra. Mas, ao entrarmos naquele pequeno espaço do mercado, cheira também a recomeço. São refugiados que chegaram a Portugal com as vidas suspensas. Mas que, entretanto, já se deixaram encantar pelo rio, pelas viagens de comboio à beira-mar, pelo sol, pela luz, pelo calor. Pelas pessoas. Ainda assim Portugal, Lisboa, não é a sua casa. A partir desta sexta-feira, estão um bocadinho mais perto dela, e vão convidar quem quiser entrar.

"Vocês sabem montar isso? Quero ver isso", desafia uma senhora que passava no mercado. Deixa uma palavra de incentivo e segue, deixando que se finalizem os últimos detalhes. É o frenesim da estreia. Quem anda de avental preto, o do Mezze, de um lado para o outro confessa o nervoso miudinho que vai aparecendo antes da abertura. Esta sexta há festa de inauguração só para convidados, mas a partir de terça-feira está aberto a todos os que queiram conhecer um projecto que nasceu das saudades do pão sírio. Que nasceu pelas mãos de portugueses, mas que só se concretiza pela vontade de quem nos vai servir agora o pão, depois de eles mesmos terem comido o pão que o diabo amassou. 

O Mezze surgiu pela mão da Associação Pão a Pão, criada por três portugueses e uma síria, estudante em Lisboa, que lhes disse que a coisa de que tinha mais saudades do país natal era do pão. “Ficamos muito espantados por não haver pão árabe em Lisboa, sendo que temos uma relação histórica muito forte com aquela região”, diz Francisca Gorjão Henriques (ex-jornalista do PÚBLICO) que, com Rita Melo, Nuno Mesquita e Alaa Alhariri, fundou a associação, para ajudar quem chega a um país desconhecido, a uma realidade completamente nova.

Diz Maria, a senhora do café que é vizinho do Mezze, que é preciso pensar também que Portugal “é um país de emigrantes”. Por isso, nota, “se queremos a integração dos nossos lá fora, devemos fazer a mesma coisa cá”. “Há soluções de acolhimento em Portugal, mas não há soluções de integração”, nota Francisca. Foi precisamente a isto que a Pão a Pão quis dar resposta. Como? Dando-lhes um emprego, ao mesmo tempo que lhes dão “uma ligação a casa” e os relacionam com a “comunidade de acolhimento”. 

Matam-se as saudades por uma chamada de Whatsapp

Para já são dez sírios que há muito têm as mãos na massa. Um deles é Rafat, 21 anos feitos, a quem pedimos para ser o nosso tradutor e a quem, embaraçosamente, pedimos que reviva, uma e outra vez as histórias de Yasser, Fátima, Fatyn ou Shiraz que têm tanto em comum com a sua. 

Cinco anos separam a sua saída da Síria e o momento em que estamos sentados à mesa de madeira do Mezze que é entretanto posta, enquanto se discute se os talheres são postos à esquerda ou à direita.

Rafat está cá há um ano e oito meses. Fugiu da Síria para a Jordânia, onde ficou sete dias na fronteira. Barraram-lhe a entrada. Voltou à Síria. Foi para o Líbano. Acabou por apanhar um avião para o Egipto onde ficou três anos. “Depois o ACNUR falou connosco para vir para Portugal. Nós dissemos que sim”. A ideia era trazer o irmão mais velho que está na Turquia, com a mulher e o filho, e que não consegue o estatuto de refugiado, para poder reunir-se com a família em Portugal.

Chegou com a mãe, Fátima, que é a chef do Mezze, as duas irmãs, os cunhados, quatro sobrinhos e o irmão mais novo. E o pai? "Morreu na Síria, na guerra. Foi no ano 2012 ou 2013”. 

Fez dos ensinamentos do pai, dono de um restaurante na Síria onde Rafat costumava passar as férias da escola a dar uma mão, a arma de sustento da família. Quando o perdeu, assumiu o papel de “chefe de família”. “A minha mãe nunca trabalhou, era dona de casa”, conta. 

Quando chegou a Portugal quis aprender a língua que era falada à sua volta. Começou a trabalhar num restaurante de kebabs, no Dolce Vita Tejo. Quando estava no curso de português, o professor falou-lhe do projecto de Alaa, a Pão a Pão. 

Começou a colaborar nos jantares sírios organizados pela associação no final do ano passado no Mercado de Santa Clara, depois nos caterings, até chegar agora ao restaurante. Vai ser empregado de mesa e não esconde o nervosismo da estreia. “É muita coisa para fazer ao mesmo tempo”. 

Testam-se os pratos, como se Fátima, a chef, não os soubesse já todos de cor, montam-se os últimos móveis e penduram-se quadros, entre as dicas na língua materna e o, ainda tímido, português. É preciso tempo, dizem-nos. 

Shiraz, 47 anos, chegou a Portugal a 23 de Setembro de 2016. A data sabe-a de cor. Quando chegou, ficou um mês em casa sem sair de casa evitando toda a estranheza de Lisboa. Agora, diz, é tudo mais fácil.  

Já sabe bem o que se quer dizer quando se fala de saudade. Tem muitas do marido que está na Síria e que não vê há quase dois anos. E de dois dos quatro filhos que estão na Turquia e na Síria. É através de uma chamada de Whatsapp que se contorna essa dor a que os portugueses atribuem uma palavra única. 

Sai uma dose de húmus, fattoush e kipe

A Pão a Pão quis orientar o Mezze para mulheres e jovens, os dois principais grupos de risco que chegam ao país de acolhimento, muitas vezes sem experiência profissional. As crianças integram-se muito rapidamente na escola. As mulheres, geralmente, trabalhavam em casa e “têm uma experiência que não é valorizada pela generalidade dos empregadores, que é cozinhar”. Depois há os jovens que viram os seus estudos e o futuro interrompido pela guerra. Muitos já não têm sequer idade de voltar ao liceu e muito menos ir para a faculdade. Em muitos casos tiveram de assumir o sustento das famílias. 

Os que ultrapassaram a desconfiança do início e que perceberam que o objectivo da associação “não era fazer um negócio, mas desenvolver um projecto de integração”, diz Francisca, “sentiram-se parte do processo”. Foram eles que decidiram, por exemplo, o que se vai comer no Mezze.

Vai haver baba ganoush, salada feita de puré de beringela, tomate, salsa, cebola, molho de romã, azeite, sal e alho. Mas também mandi, que é um arroz fumado, fattoush, uma salada com pão frito, moussaka, falafel, a famosa pasta de grão humus, kipe, um bolinho recheado com carne de vaca e um churrasco árabe com carne de borrego e frango, acompanhado com pão sírio, que está sempre presente em todas as refeições. Mas a chef deixa o aviso: tem muitas mais receitas para apresentar no futuro.

Antes de entrarem na cozinha do Mezze, a Associação Pão a Pão quis aproveitar as competências das mulheres e jovens que se iam juntando ao projecto e profissionalizá-las. Fizeram um protocolo com o Turismo de Portugal, que deu um mês de formação a uma equipa de 16 refugiados para que ficassem com certificados em segurança e higiene alimentar e técnicas básicas de cozinha. Agora, diz Francisca Gorjão Henriques, “mesmo que as coisas não dêem certo, ou queiram partir para outro projecto, já têm essa ferramenta”.

Para já, são dez a trabalhar no restaurante. Mas, diz Francisca, a ideia é alargar o número porque já há um serviço de catering que está a ter “imenso sucesso”. Depois, no futuro, fica a porta entreaberta a mais “Mezzes” pelo país, onde houver uma comunidade de refugiados do Médio Oriente e público que esteja aberto a esta gastronomia. Em Lisboa, já batem à porta do restaurante a pedir reservas, diz Francisca. São curiosos pela comida do Médio Oriente, mas também pessoas “que muitas vezes querem ajudar refugiados e não sabem muito bem como”. 

“Não vou começar do zero outra vez”

Entre orientações aos ajudantes e chamadas para os fornecedores, perguntamos a Rafat se não voltou à Síria. A resposta é não e obrigámo-lo a recordar a vida que ficou para trás. “A vida toda”, faz questão de frisar. “Tínhamos casa, o restaurante, tínhamos uma vida boa”. No Egipto, as coisas foram “muito, muito difíceis”. Depois a vida endireitou. E recomeçou tudo outra vez. “Mas já consegui. Graças a Deus”, diz. Já apanhou as “bengalas” portuguesas e o vocabulário que os jovens da idade dele repetem.

“Eu gosto muito de Lisboa. Já tenho a experiência de fora do meu país. Aqui é muito mais calmo do que nos outros. As pessoas são muito simpáticas. A vida aqui é um bocadinho mais fácil”. O mais chato é a burocracia, queixa-se Yasser, 22 anos, o padeiro do restaurante que chegou há pouco mais de meio ano. No geral, diz, as pessoas têm-nos recebido muito bem. “Aconteceu só uma coisa com a minha mãe por causa do lenço. Uma mulher disse que ela era maluca”, conta Rafat. Desvaloriza e insiste que o que mais gosta no país é das pessoas. E do clima. E do Algarve por onde já andou. 

Para a abertura, Rafat está a preparar, com os amigos e com Alaa, uma “festa tradicional”, com música e dança. Perguntamos-lhe se tem alguma ideia do que quer fazer no futuro. "Quero ter uma vida boa. Queria também estudar. E depois não sei se vou para a faculdade ou não. Deixa ver”. E voltar à Síria? “Tenho de pensar muito bem. Não vou começar do zero outra vez”. 

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