Haverá alguma regra para fazer um romance?
Dois romances maiores e um ensaio esclarecedor num único volume.
O presente volume colige dois romances e um texto ensaístico cujo título deveria figurar também na capa. É verdade que O Romance, o ensaio em causa, se tornou, equivocamente, um apêndice prefacial recorrente do terceiro romance de Maupassant, desde a primeira edição em volume de Pierre e Jean, em 1888. A opção do editor oitocentista foi, porém, circunstancial e o autor logo reclamou a autonomia e a igual importância dos dois textos: o ensaístico (publicado antes no jornal Le Figaro) e o ficcional. Mas a razão maior para sublinhar a publicação de O Romance é outra.
Talvez por ter tido Flaubert como seu mestre de “escrita criativa”, Guy de Maupassant (1850-1893) tardou em começar a publicar, concentrando-se a sua produção romanesca (seis romances e centenas de contos) na prodigiosa década de 1880. O escritor foi, sobretudo, um “fabro” (e foi um dos melhores) e, embora a reflexão e a problematização estéticas estejam presentes nos diálogos epistolares com Flaubert, Zola e Turgenev, por exemplo, e em alguns artigos jornalísticos, é em O Romance que Maupassant compendia a sua concepção da arte literária. Tê-lo-á feito menos para tomar partido nas animadas disputas doutrinárias da época do que para marcar o território da sua liberdade autoral.
Depois de referir Dom Quixote, O Conde de Monte Cristo, As Afinidades Electivas, Madame Bovary e Germinal, entre outros exemplos, pergunta Maupassant: “Haverá alguma regra para fazer um romance, sem a qual uma história escrita deveria chamar-se de outro modo?” Não há. Daí que o autor, recusando à crítica “o direito de se ocupar com as modas”, recomende que “o crítico deve avaliar o resultado apenas em função da natureza do esforço”. E observa: “Isto já foi escrito mil vezes. Torna-se necessário repeti-lo sempre.” Eis o que se poderá dizer também sobre algumas considerações que Maupassant formula a propósito das pretensões ideológicas do Realismo e do Naturalismo. Lembrando que os escritores realistas “têm muitas vezes de corrigir os acontecimentos em prol da verosimilhança e detrimento da verdade” (pois “o verdadeiro pode por vezes não ser verosímil”), o autor argumenta que a tarefa daqueles é “dar-nos uma visão mais completa, mais cativante, mais convincente do que a própria realidade”. Isto é, a tarefa da arte realista consistiria em “dar a ilusão completa da verdade” e “os Realistas de talento deveriam antes chamar-se Ilusionistas”. Não estou certo de que esta lucidez não possa ser ainda de alguma utilidade, hoje.
Lê-se na contracapa da corrente edição que os romances Forte Como a Morte (1889) e Pierre e Jean estavam “até hoje inéditos em Portugal”. Não é exactamente assim, e o primeiro foi até objecto de uma tradução portuguesa logo no século XIX. Porém, considerando que há muito se não encontravam disponíveis, e, sobretudo, tendo em conta que as traduções, em geral, envelhecem mais depressa do que os originais, era como se estivessem inéditos. São ambos exemplares (e bons) do realismo psicológico do autor, com uma acção temporalmente linear, contada por um narrador cuja omnisciência é temperada pelo recurso à troca epistolar entre as personagens (no início da segunda parte de Forte Como a Morte) ou ao discurso indirecto livre (no caso de Pierre e Jean), e escritos naquela linguagem clara e “lógica” que o autor afirma calhar à “natureza” do francês.
Maupassant gosta da simetria. Forte Como a Morte, romance de ociosos costumes parisienses (a ida à Ópera, os passeios pelo Bosque, a inauguração do Salão de Pintura, etc.), começa no estúdio do protagonista, Olivier Bertin, pintor bem sucedido artística e mundanamente, e aí termina. Pierre e Jean, romance provinciano e marinho, de ambiência pequeno-burguesa, tem início no porto do Havre e aí acaba. Neste caso, a simetria é acentuada pelo divisão do romance em nove capítulos que parecem formar um díptico que tem o seu eixo no capítulo quinto, no qual a contemplação de certo retrato, confirmando as suspeitas de um adultério passado, vem dividir definitivamente a família Roland. O motivo do retrato também é usado em Forte Como a Morte, aqui servindo de prova da passagem do tempo e sendo expandido e acentuado quando as personagens principais se examinam ao espelho. Igualmente presente, o adultério não chega a ser um tema, neste romance. O rico e célebre Bertin retratou a bela condessa de Guilleroy, que se tornou sua amante. Doze anos depois, o pintor apaixona-se pela filha adolescente da condessa, que se tornara o “retrato vivo” da mãe.
O último capítulo de Forte Como a Morte tem início na Ópera, durante uma representação de Fausto, sequência que tem a dupla função de registar um hábito social e enfatizar a tensão psicológica do protagonista. Quando Fausto diz que trocaria todos os tesouros pela juventude eterna, Bertin — que “vinte vezes já tinha escutado aquela ópera, que conhecia quase de cor” e que “lera outrora o poema [de Goethe], que considerava muito belo, sem ficar muito emocionado” — sente de repente que, “naquela noite, se transformava, ele mesmo, num Fausto”. O envelhecimento ressentido como tragédia, eis o tema de Forte Como a Morte. Contudo, e não obstante o fatal desenlace, Bertin não chega a ser uma personagem fáustica ou propriamente trágica. E se a flébil condição do nosso pintor talvez fosse adivinhável desde o início, quando dele se diz que “por volta do fim da vida continuava o homem que ainda não sabe ao certo na direcção de que ideal caminhou”, o final inesperadamente melodramático do romance não o favorece.
Neste sentido, Pierre e Jean, sendo um “estudo psicológico” naturalista, é também um romance superior, se relativizarmos historicamente alguns aspectos do núcleo temático. Zola considerava-o o melhor romance de Maupassant. E com razão.
Apesar de o autor lhe recusar esse estatuto no título, Pierre, que tem algo de anti-herói existencialista, sem qualidades, edipiano, hamletiano, é o verdadeiro protagonista do romance e é uma personagem estranhamente nossa contemporânea na sua busca trágica da ‘verdade’.
Pierre, o primogénito, e Jean são dois irmãos em tudo opostos, na sua “fraterna e inofensiva inimizade”. Um dia, um amigo da família morre, deixando ao mais novo uma bela herança. Pierre interroga-se sobre a razão por que foi preterido. E o seu mundo familiar ganha uma insidiosa e fatal estranheza, “o germe secreto de um mal novo”. O pessimismo de Maupassant nunca foi tão moderno como neste romance.