A música do destino

Os Chapéus de Chuva de Cherburgo e As Donzelas de Rochefort são as primeiras expressões acabadas do musical ao estilo de Jacques Demy. Mais do que um par, os filmes que esta semana regressam às salas, são como um disco, com uma face mais melancólica e uma face mais luminosa e vibrante.

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REPORTERS ASSOCIES/Gamma-Rapho via Getty Images

Logo nos primeiros minutos de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, quando o espectador – que pode ser qualquer um, mas imaginemos um espectador "comum" de 1964, ainda sem o peso de um "consciência histórica" de Jacques Demy e do filme – já foi mergulhado nos ambientes banais, "proletários", mas filmados com a opulência do cinemascope e dum technicolor flamejante, de uma Cherburgo ainda meio escalavrada pelos combates da II Guerra, mas ainda não dissipou a estranheza de ver todas as personagens a dizerem as suas falas "em cantado", acontece um diálogo entre o protagonista (Nino Castelnuovo) e um seu colega da oficina de automóveis em que trabalha. Falam do cinema e da ópera e alguém conclui que o cinema é preferível porque parece mais "natural" do que a ópera, onde "todas as personagens estão sempre a cantar". Duma penada, e como um gag, o filme assume-se (e nalguns momentos a partitura de Michel Legrand cita ou faz tangentes a trechos bem conhecidos do reportório operático), vira do avesso a estranheza da sua opção musical, e sobretudo vira do avesso a "naturalidade" (ou o "naturalismo") que a personagem cantara (literalmente) como vantagem do cinema. E, com isso, anuncia-se, tão explicitamente quanto o filme o podia fazer, o mundo de Jacques Demy, um mundo em que o espectáculo é trazido para dentro duma ordem de realidade, sem a quebrar.

Os Chapéus de Chuva... foram um enorme sucesso, e ainda são hoje (53 anos depois da estreia) o filme mais lembrado de Demy. Num certo sentido, embora fosse já a sua terceira longa-metragem, foi o filme com que ele sonhava desde o início, e porventura até desde antes do início. Quando, no filme biográfico (Jacquot de Nantes) que Agnès Varda, sua mulher e companheira de vida e trabalho durante décadas, estreou em 1991 (um ano depois da morte de Demy), vemos o jovem Jacques assustado com os bombardeamentos aliados sobre Nantes durante a II Guerra, e a refugiar-se num mundo de fantasia (que era já o cinema, o cinema das marionetas, o cinema dos desenhos semi-animados, o cinema dos formatos "amadores"), tem-se um vislumbre de uma explicação para o papel do sonho, do espectáculo, das canções, das danças, no universo de Demy: uma forma de esconder, de fechar os olhos, de sobreviver a um horror ou a uma tragédia, mantendo sempre a consciência de que não é por isso que o horror ou a tragédia vão desaparecer. Pelo contrário, estão lá à espera – a realidade mascara-se, o destino finta-se, mas no fim do caminho continuam lá.

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A“leveza” de Demy revela-se tão assombrada e tão magoada: Os Chapéus de Chuva de Cherburgo
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É por isto que a "leveza" de Demy, o algodão doce das lojinhas de guardas-chuvas e dos bailes de um salão recreativo da província, se revela tão assombrada, e tão magoada, como é o caso em Chapéus de Chuva, filme sobre a perda da inocência, sobre a inconsequência dorida dos amores juvenis, sobre as voltas de um destino que nada tem de sobrenatural e em tudo depende das circunstâncias terrenas (podíamos dizer que é outra vez a guerra, por exemplo: o afastamento fatal dos jovens amantes de Cherburgo, Castelnuovo e Deneuve, é ditado pela obrigação dele de ir cumprir serviço militar à guerra da Argélia – pois que se ali havia aquelas cores e canções todas, do outro lado do Mediterrâneo travavam-se combates de morte, protagonizados por milhares de miudos como Guy – assim se chama o protagonista).

Certo, certo, é que Demy já sonhava com um filme assim quando se estreou na longa-metragem com Lola, em 1961, em pleno balanço da "nova vaga". Foi esse – o cinemascope, o technicolor, a música por todo o lado – o projecto que apresentou a Georges de Beauregard, um dos produtores-chave daquela geração. Demy, que era cinéfilo e cineclubista voraz desde a infância, acabara como muitos outros por ir aportar a Paris, tomar conhecimento com os nomes cruciais – os que escreviam nos Cahiers du Cinéma: Godard, Truffaut, Rivette, Rohmer – daquela geração, frequentar a redacção da revista, tornar-se compagnon de route. Mas não "nasceu" aí, e já começara o seu caminho, em associações que pouco ou nada têm a ver com a nouvelle vague. Tivera mesmo (em 1956), uma belíssima curta-metragem (Le Sabotier du Val de Loire,  documentário sobre um fabricante de tamancos tradicionais), feita com o apoio de Georges Rouquier; sob a égide de Jean Cocteau e Jean Marais rodara outra curta (Le Bel Indifferent, adaptação/variação sobre a A Voz Humana de Cocteau), que foi o seu primeiro filme pleno de vermelhos berrantes; e ainda, notavelmente, um estranho filme sobre um "pároco de província" (Ars), feito sob a provável influência de Bresson (que, por bizarro que possa parecer dadas as diferenças entre o cinema de um e de outro, era uma das maiores devoções de Demy). Mas, se gostava de Bresson, também gostava de outras coisas: do grande musical americano, ou dos filmes de Max Ophuls, com quem aprendeu os travellings e de quem herdou o sentido "fático".

E foi a pensar nessas adorações que apresentou a Beauregard o projecto de Lola, que ele pretendia tão all singing e all dancing como um musical de Minnelli e tão colorido e tão trágico como o Lola Montès de Ophuls. Beauregard convenceu-o a fazer o filme abdicando das cores e reduzindo o "musical" a momentos cuidadosamente seleccionados (ficaram a dedicatória a Ophuls, o scope, e a presença de alguns elementos "americanos", como os automóveis e algumas personagens). O filme respirava o mesmo ar da nouvelle vague, e integrou-se nela pacificamente. Depois de um segundo filme a preto e branco (o sublime La Baie des Anges, com Jeanne Moreau), voltou a Beauregard com o projecto dos Chapéus de Chuva e outra vez a receita do musical multi-colorido. O produtor voltou a contrapor a receita nouvelle vague, com o preto e branco e o musical em "contenção". Desta vez Demy já não aceitou, e encontrou depois o apoio de Mag Bodard (produtora igualmente, nesses anos 60, de Godard, Varda, Bresson, Resnais, Pialat...) que aceitou fazer o filme como ele o queria fazer.

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As Donzelas de Rochefort é a procura duma “ingenuidade” quase kitsch; as personagens têm plena consciência do destino e confiança de que ele acabará por arranjar as coisas
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Bodard produziria ainda As Donzelas de Rochefort (e, mais tarde, Peau d'Âne), e não era obviamente, pelo currículo, uma produtora estranha à nouvelle vague ou à modernidade do cinema francês. Mas, simbolicamente, os Chapéus de Chuva, como as Donzelas, marcam o princípio do afastamento de Demy em relação ao eixo da nouvelle vague, e o início de uma muito maior ambiguidade na relação com a crítica francesa, pelo menos com a mais influente, mais relevante, e mais influenciada pela geração dos Cahiers dos anos 50. O seus filmes do final dos anos 60 e 70 (Model Shop, O Acontecimento Mais Importante desde que o Homem Chegou à Lua, Lady Oscar), não conseguiram o mesmo tipo de eco, a bem dizer nem em termos de público, e antigos admiradores (como Godard, fora um grande fã de Lola) vieram dizer que o cinema de Demy se tornara estéril, desligado, irrelevante. Com uma excepção, o caso de Um Quarto na Cidade, em 1982, o filme mais negro de Demy (tão negro que Michel Legrand não quis compor a música, não reconhecia ali Demy e sobretudo não se reconhecia a ele: "ce n'est pas moi", disse ao realizador), e um regresso tardio à fórmula do "em cantado", quase uma revisão – mais decididamente adulta e mais explicitamente política – dos Guardas-Chuvas. Foi o último momento de aclamação crítica de Demy, mas um flop nas bilheteiras (o mundo mudara muito dos anos 60 para os anos 80, mas os espectadores se calhar ainda mudaram mais), e pretexto até para uma pequena polémica na imprensa francesa, ao género daquelas que agora são comuns na internet, sobre o "cisma" entre "críticos" e "espectadores".

Sobre a reacção ao seu último filme, Trois Places sur le 26 (outra vez sobre o espectáculo e com um actor, Yves Montand, vindo dum cinema popular à margem da Nouvelle Vague e suas descendências), estreado no final dos anos 80, pouco antes da sua morte, há um apontamento significativo. Em Les Cinéphiles, o filme de 1989 em que o (grande) crítico Louis Skorecki fez um apanhado das manias, práticas e idiossincrasias dos "últimos cinéfilos de Paris" (no mesmo passo em que punha uma lápide sobre essa entidade a que chamamos a "cinefilia clássica"), abre com uma personagem, mais ou menos um émulo de Serge Daney, a sair duma projecção do filme de Demy directamente para a casa de banho do cinema, onde enquanto urina vai balbuciando entre dentes: "que horror! que piroseira de filme!".

Contar isto é uma maneira de dizer que, apesar de tudo, Jacques Demy não é um nome tão consensual nem tão intocável como outros da sua geração, e que há uma certa dificuldade em encaixar, integrar, a confluência entre um cinema que é, pela prática, bastante moderno e bastante consciente do momento histórico em que é feito, mas que parece ter os olhos postos numa ideia de espectáculo mais popular, mais vetusta, menos sofisticada. Se há indícios disso em Os Guardas-Chuvas de Cherburgo, a forma absolutamente "inteira" como Demy concebe as suas personagens e as suas tragédias pessoais disfarçam-no muito bem. Mas em As Donzelas de Rochefort essa procura duma "ingenuidade" quase kitsch está muito mais estampada.

Se o Inverno de Cherburgo estava carregado de pathos, o sol de Cherburgo (outra cidade portuária, o cenário preferido do cineasta sempre à procura da Nantes da sua infância) é uma grande feira popular; se os papéis de parede de Cherburgo rimavam, ou contrapunham, os estados de alma das personagens, aqui é a cidade inteira (as cores das fachadas, das janelas) que faz rima (e quase nunca contraponto) com as indumentárias e a alegria das personagens; se as personagens de Cherburgo estavam, sem saber, a correr para um embate com o destino, as de Rochefort têm plena consciência do destino e absoluta confiança de que ele acabará por arranjar as coisas (como a personagem do muito louro e muito jovem Jacques Perrin, sempre com um optimismo de sorriso aberto que tem tanto de tocante como de ligeiramente enervante); e se as personagens de Cherburgo viviam como que manietadas dentro das canções (não havia danças, a coreografia era a inerente à mise en scène, e portanto "bailados" só em sentido figurado e muito slow motion) as de Rochefort libertam-se a todo o momento, em explosões de movimento "em dançado" que têm tudo a ver com a tradição do musical americano propriamente dito (e do musical americano chegam a Rochefort um símbolo maior, Gene Kelly, e uma starlet, George Chakiris, de fama breve por via do West Side Story).

É um filme de alegria, tanto quanto o de Cherburgo é um filme de tristeza – e talvez tenhamos mais dificuldades para lidar com a alegria nos filmes do que com a tristeza nos filmes. Em todo o caso, há ecos e premonições, ecos e premonições dentro do filme (como sempre em Demy e ainda para mais neste, espécie de "teoria geral do Destino segundo Jacques Demy"), ecos e premonições de outros filmes do realizador, então já feitos ou ainda por fazer – Michel Piccoli encerrado na sua loja de instrumentos musicais antecipa o mesmo, e muito mais trágico, Piccoli, encerrado na sua loja de televisores em Um Quarto na Cidade. Mas esse é outro filme, de facto, e bem distante – aqui, em Rochefort, é o tempo da alegria e o tempo de um destino que se acredita trabalhar a favor da felicidade. Com o filme de Cherburgo, fica uma espécie de díptico. Ou melhor, de 45 rotações. Ao espectador decidir o lado A e o lado B.

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