Paraísos artificiais: oásis na Califórnia deserta

Oásis, lagos, nascentes e riachos. Furnace Creek, Silurian Lake, Silver Lake, Palm Springs, Cottonwood Spring. O deserto do sudoeste americano está marcado pelos pontos de água que permitiram a ocupação deste território árido.

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Zabriskie Point, Death Valley, Califórnia Tiago Silva Nunes
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Rasor Road, Baker, Califórnia Tiago Silva Nunes
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Zzyzx, Califórnia Tiago Silva Nunes
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Autoestrada 405, Bel Air, Los Angeles, Califórnia Tiago Silva Nunes
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Reservatório Silver Lake, Los Angeles, Califórnia Tiago Silva Nunes
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Pacific Palisades, Los Angeles, Califórnia Tiago Silva Nunes
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Kelso, Deserto Mojave, Califórnia Tiago Silva Nunes
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Rio Los Angeles, Califórnia Tiago Silva Nunes
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Skatepark, Venice Beach, Los Angeles Califórnia Tiago Silva Nunes
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Casa Kaufmann (1946), Richard Neutra. Palm Springs, Califórnia Tiago Silva Nunes
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Mirage (2017), Doug Aitken. Palm Springs, Califórnia Tiago Silva Nunes

Nesta segunda parte da nossa viagem pelos desertos Mojave e Sonora fomos encontrando várias povoações que se desenvolveram por causa da água, tanto pela abundância como pela escassez. Muitas das nascentes que visitámos eram usadas pelos povos nativos do continente americano como locais sagrados e de subsistência. Foram estes mesmos pontos de água que permitiram a ocupação do Oeste pelos pioneiros. O Destino Manifesto foi assim posto em prática por milhares de pessoas, atraídas pela possibilidade de lucrar com as promessas da Califórnia Dourada: ouro, agricultura e petróleo. Esta migração só se tornou possível com a ligação transcontinental dos caminhos-de-ferro, em que os oásis tiveram um papel fundamental. Vamos ver como a água foi determinante para criar a imagem do éden da Califórnia e para estabelecer um grande oásis artificial à escala metropolitana, Los Angeles.

A revelação no Mojave

Seguimos viagem a partir da barragem Hoover em direcção ao Mojave. Este deserto, talvez pela sua proximidade a Los Angeles e a Las Vegas, é um dos mais consumidos pelo imaginário mediático. As paisagens do Mojave tornaram-se icónicas como cenários de westerns e de filmes de ficção científica. É comum encontrar turistas a conduzir Fords Mustang, alugados por uns dias como que encenando as fantasias do seu imaginário no deserto.

Conduzimos para sul pela Route 95, numa planície longa ladeada por montanhas. No sopé dessas montanhas brilham os grandes painéis solares da Nevada Solar One, uma central eléctrica parte de um projecto desenvolvido durante a crise do petróleo dos anos 1970. Há um trecho da Route 95 que é um memorial aos veteranos de guerra, com várias placas que listam guerras por ordem cronológica, desde a Primeira Guerra Mundial até à contemporânea Global War on Terror. A estrada é longa, ainda tem muito espaço para incluir as guerras do futuro.

Nesta fase da viagem, estamos a seguir os passos do historiador de arquitectura britânico Reyner Banham, que descreveu a sua passagem pelo Mojave em Scenes in America Deserta (1982). Chegamos a Kelso, hoje uma cidade-fantasma, antigamente uma importante paragem ferroviária. Há poucos edifícios para além da estação de caminho-de-ferro, que foi restaurada e é agora um posto de informação do parque natural. Mas ainda sobram as árvores que se aproveitam da água que antigamente alimentava as locomotivas a vapor.

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Banham teve uma revelação no deserto quando, fazendo o caminho de Las Vegas até Los Angeles, resolveu fazer um desvio em Rasor Road. Conduzimos as mesmas 3,5 milhas que Banham descreve no seu livro e parámos o carro, o sol estava ainda alto, identificámos ao fundo as montanhas de curvas suaves, “um horizonte composto por figuras reclinadas de Henry Moore”. Ali, Banham teve uma visão que o transformou, viu “uma extraordinária luminescência” parcialmente reflectida pelos sais e partículas suspensas do deserto. Inspirado pela era atómica, Banham chamou-lhe luz Cherenkov, porque “brilhava fria e misteriosa” como a radiação fluorescente de um reactor nuclear. Banham descreve esse episódio como “algo tão para além do seu conhecimento e experiência” que soube que se tinha tornado um “desert freak.”

Oásis de fantasia

Seguimos a Zzyzx Road (lê-se zaizix), a estrada que corre paralela a uma das margens da superfície seca do Soda Lake, um resíduo do grande lago Mojave que ali havia no Holoceno. Para Banham, este lago era a imagem do “mar fóssil” de Ray Bradbury, uma superfície calma com gradientes de cinzento. Muitas destas áreas desertas ainda têm sinais do tempo em que tinham água em abundância. As formas das planícies recordam-nos esses lagos primitivos e muitas vezes não conseguimos dizer com certeza se estamos a ver água ou uma miragem.

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Ao longe avistámos palmeiras, chegámos ao oásis de Zzyzx, que se situa numa área de nascentes, as Soda Springs. Aquelas palmeiras estão ali desde a década de 1950, quando o evangelista da rádio que dizia ser médico, Curtis Howe Springer, resolveu ali criar uma estância termal. A maior parte desta estância está abandonada, mas resta o Desert Studies Center da Universidade de California State. O pequeno grupo de edifícios é simples, mas a ambição do projecto está presente na desmesura do lago em frente ao Boulevard of Dreams. Como disse Banham, Zzyzx é um “oásis de fantasia”.

Rumámos ao Death Valley, atravessámos as montanhas alienígenas de Jubilee Pass e a partir daí seguimos a belíssima Badwater Road. Esta estrada segue a margem da Bacia Badwater, o ponto mais baixo da América do Norte, 86 metros abaixo do nível do mar. Nesta planície de sal, o percurso da estrada ora se aproxima das montanhas — e ficamos perto das paredes de rocha —, ora se afasta em direcção à planície.

O sol caía por trás das montanhas Panamint, milhares de partículas de pó começaram a reflectir a luz que se extinguia. E num instante apareceu uma massa de luz colorida, azul, violeta, magenta, que mudava de segundo a segundo. Essa luz densa, a que Banham chamava Cherenkov, não é fotografável. Depois de a ver, pensei que algumas instalações do artista James Turrell aspiram a simular essa progressão de luz.

A sensação de estar num espaço do imaginário colectivo é bastante intensa no Parque Nacional Death Valley. Estas paisagens parecem estranhas, como de outro planeta, mas também familiares porque apareceram em tantos filmes. Também se visitam estes locais à procura desses espaços do imaginário e nós fomos ver o nascer do sol a Zabriskie Point, o lugar que dá o nome ao filme de Michelangelo Antonioni. O filme, de 1969, representa uma América dividida entre a cultura estabelecida e a contracultura. Zabriskie Point aparece no filme como um lugar enigmático onde os protagonistas — a personificação da contracultura — têm uma experiência com alucinogénios.

No entanto, aquele lugar está nomeado em honra de Christian Zabriskie, o vice-presidente da Pacific Coast Mining Company. Até ao início do século XX, o Death Valley era principalmente ocupado por explorações mineiras de bórax. Em 1927, a mina que existia em Furnace Creek foi substituída por um hotel de luxo, um lugar para passar dias amenos de Inverno e ir a banhos nas águas quentes das nascentes. O hotel era propriedade da mesma companhia que passou a explorar aquele local pelas suas qualidades pitorescas e pelo imaginário dos pioneiros do Oeste.

Aquele oásis no deserto, que originalmente permitia a subsistência da tribo Timbisha, foi explorado pelas indústrias extractivas, depois pelo turismo e finalmente pelo cinema. Estes dois últimos complementam-se, pois o cinema cria lugares que passam a existir no nosso imaginário colectivo e que desejamos visitar. Muitos dos locais de rodagem da saga Star Wars são no Death Valley; quando caminhamos no Golden Canyon, estamos também no deserto ficcional de Tatooine, onde vivia Luke Skywalker.

Partimos de Death Valley em direcção a Los Angeles. Deixámos para trás a paisagem montanhosa, a estrada a caminho de Trona é uma linha recta no Panamint Valley. A certa altura passou por nós um jacto militar, voando baixo e seguindo precisamente a linha da estrada. Foi uma visão surpreendente, mas que não pareceu surreal, há poucas horas estávamos em Tatooine, portanto fazia todo o sentido que Luke Skywalker passasse por aqui. Na verdade, grande parte daquele espaço aéreo é ocupado pela base militar Naval Air Weapons Station China Lake, uma das maiores áreas militares nos Estados Unidos.

A paisagem torna-se mais industrial assim que nos aproximamos de Trona, uma povoação maioritariamente dependente da extracção de bórax da superfície mineral de Searles Lake. Por todo o lado há sinais de decadência: os edifícios em ruínas, a estrada mal pavimentada, o carrinho de supermercado abandonado. Esta paisagem continua por muitos quilómetros até Antelope Valley, onde passámos pelas povoações de Mojave, Lancaster, Palmdale. Ali perto encontramos a base militar aérea Edwards, onde o Space Shuttle aterrou várias vezes na pista de Rogers Dry Lake. O lugar onde se testam veículos que viajam na direcção das estrelas é o mesmo onde a população vive no meio da pobreza e violência. São estes os bastidores da Califórnia dourada.

O rio artificial

A aproximação a Los Angeles demonstra-nos como a cidade só subsiste devido à extracção de recursos à escala regional, especificamente água trazida desde Mono Lake num aqueduto que se estende por mais de 670km. Foi William Mulholland quem concebeu e dirigiu a construção desse grande rio artificial. O seu nome sobrevive ainda hoje em Mulholland Drive, a estrada globalmente célebre depois do filme homónimo de David Lynch. O aqueduto foi inaugurado em 1913 e desde então transformou as planícies desertas de Los Angeles em oásis artificiais. Em menos de cinco anos a cidade triplicou de tamanho, expandindo-se para noroeste até San Fernando Valley e oeste até Santa Mónica. O filme de Roman Polanski Chinatown (1974) conta a história da expansão de Los Angeles e representa os modos como se transformaram paisagens áridas em projectos imobiliários lucrativos para um pequeno conjunto de investidores.

Uma consequência do aqueduto foi o desaparecimento da água do Lago Owens, situado 400km a norte da cidade. Segundo o historiador e professor de UCLA Jon Christensen, “o aqueduto de Los Angeles é o pecado original, assim como o empreendimento-chave do Oeste americano, tornou-se o símbolo da húbris das cidades que desviam a água de que necessitam, mesmo que tenham de fazê-lo a centenas de quilómetros”. Não é possível construir um oásis, ou éden artificial, sem destruir outro território.

A água proveniente do aqueduto é guardada em vários reservatórios, como o de Silver Lake. A presença desse lago artificial cria um foco de desenvolvimento urbano nas pequenas colinas que o circundam. Hoje alguns destes lagos artificiais estão contaminados e já não são usados como reservatórios de água potável, mas no entanto permanecem cheios porque criaram lugares atraentes do ponto de vista imobiliário. Estes lugares são o simulacro do éden.

Em oposição a estes oásis artificiais está o rio Los Angeles, puramente infra-estrutural, cujo caudal está contido em taludes de betão e é ladeado por inúmeras linhas de caminhos-de-ferro. As suas pontes art déco contrastam com a paisagem agressiva e industrial. Os seus nichos, planeados como plataforma de observação, são hoje utilizados como habitação por sem-abrigo de Skid Row — a maior comunidade sem-abrigo dos Estados Unidos. Wim Wenders disse que “as paisagens contam histórias, e o rio Los Angeles conta uma história de violência e perigo”. O rio manifesta a tensão que existe entre o artificial e o natural, o habitável e o inabitável.

Éden fabricado

Los Angeles representa-se como um paraíso. Em 1971, Banham publicou Los Angeles: The Architecture of Four Ecologies onde fez a apologia de uma cidade que era globalmente desconsiderada. Para Banham, Los Angeles no final da década de 1960 parecia a cidade do futuro. As quatro ecologias correspondem a lugares e a estilos de vida: a utopia das auto-estradas (autopia), as cidades-praia (surfurbia), as colinas (foothills) e as planícies do id (plains of id). A sua visão optimista foi criticada por se concentrar na imagem da Califórnia Dourada e ignorar os graves problemas sociais e urbanos da cidade. No entanto, a sua classificação ainda tem validade, pois há um sistema geográfico definido pela autopia — as auto-estradas 405 e 10 — que divide o território em áreas distintas: as praias, as colinas e as planícies.

Conduzimos pela autopia de Ventura Highway e descemos Malibu Canyon. A paisagem altera-se radicalmente quando nos aproximamos da costa do Pacífico, a vegetação é abundante naquelas colinas e o sol, até ali tórrido, foi subitamente tapado por nevoeiro. Os habitantes de Pacific Palisades chamam-lhe a “Tristeza de Junho”, que em inglês rima June Gloom. A divisão da cidade de Los Angeles nota-se assim, até na previsão meteorológica, que anuncia sol para as planícies e nevoeiro para as colinas, sendo estas os locais mais privilegiados onde é criado o imaginário da cidade.

Banham foi muito criticado por considerar que a habitação nas colinas de Los Angeles estaria acessível à classe média. Essas colinas ocupam apenas uma pequena área da cidade a norte de Sunset Boulevard até Mulholland Drive e criam uma zona fechada e exclusiva de ruas estreitas. Mas foram estas habitações unifamiliares que construíram o imaginário da cidade. No pós-guerra, a aspiração da classe média materializava-se numa destas casas com piscina, um jardim do éden muralhado, uma tipologia que se espalhou globalmente.

O paradigma desta tipologia é a casa Stahl, projectada por Pierre Koenig, que se tornou um ícone. Fotografada por Julius Shulman em 1960, a sua imagem apareceu na revista Time e transformou-se imediatamente no ideal da casa moderna, de planta livre e com grandes superfícies de vidro, permitindo vistas sobre as planícies da cidade. A fotografia de Shulman revela a importância das imagens na criação de lugares e objectos de desejo. O sucesso dessa imagem é tal que hoje encontramos milhares de iterações no Instagram. Quando a visitámos, cerca de metade das pessoas do grupo só conheciam a casa a partir do Instagram, também elas procurando ocupar e disseminar essa fantasia.

Piscinas vazias

A piscina da casa Stahl tem o fundo curvo, uma representação artificial da natureza em voga desde os anos 1950. Esse modelo espalhou-se por toda a cidade, desde as colinas às planícies. No final da década de 1970, houve uma grande seca na região e todas as piscinas tiveram de ser esvaziadas. Foi nessa altura que um grupo de surfistas e skaters teve a ideia de usar essas piscinas. As formas fluidas assemelhavam-se a ondas e permitiam executar com skates manobras de surf. As fotografias dessas sessões de skate em piscinas vazias transformaram a imagem desse desporto e criaram um novo capítulo na cultura da surfurbia. Quando acabou a seca e as piscinas voltaram à sua função original, passaram a construir-se lugares que imitavam estas formas, e assim nasceu o skatepark.

Visitámos o skatepark de Venice Beach, uma caricatura de um oásis com uma piscina vazia rodeada de palmeiras e dunas. Este skatepark, embora recente, evoca a memória da Venice Beach do passado. Na década de 1970, os skateparks apareciam em espaços urbanos abandonados, nessa altura esta parte da cidade estava decadente e abandonada, passando a ser povoada pela cultura alternativa de Jim Morrison e Janis Joplin, assim como por  artistas como John Baldessari, Ed Ruscha e Dennis Hopper. Actualmente não é assim, apenas a imagem dessa cultura permanece, passámos pelo famosos binóculos de Claes Oldenburg no edifício de Frank Gehry que hoje aloja os escritórios do Google. A imagem da cultura alternativa radical é agora utilizada como estratégia de marketing, por todo o lado, graffiti servem de decoração de cafés e lojas.

Conduzindo para norte ao longo da Pacific Coast Highway, também fazemos uma viagem no tempo. Chegamos a Malibu Surfrider, praia conhecida desde a década de 1960 pelas suas ondas longas e perfeitas. Esta praia parece materializar a surfurbia de Banham, a forma das ondas proporcionam um estilo de surf clássico. Banham foi criticado por considerar surfurbia o lugar da liberdade, ignorando que uma grande parte das praias da cidade são espaços privados. Mesmo ao lado de Surfrider, Malibu Colony é uma comunidade afluente que ilegal e impunemente restringe o acesso à praia.

Estes lugares míticos de Los Angeles — Malibu, Pacific Palisades, Santa Monica, Venice — representam a maioria das imagens da cidade. Mas no entanto são apenas  uma parte muito restrita, reservada e diminuta daquilo que é o tecido geral da cidade. A grande massa da cidade estende-se por uma área muito mais vasta mas invisível, as plains of Id. Quando lhe perguntei sobre Los Angeles, Baldessari disse-me, “acho que se voar sobre Los Angeles verá que é plana,” e citou Robert Smithson, “LA tem 40 milhas x 40 milhas x 7 polegadas.”

Inland Empire

A maior área urbana de Los Angeles estende-se para sul até Long Beach e para leste até San Bernardino. Estes vastos subúrbios estão longe da prosperidade prometida pela imagem da Califórnia, muitos estão poluídos e as suas reservas de água contaminadas. O movimento pendular feito por inúmeros habitantes entre San Bernardino e o centro de Los Angeles chega aos 120km e é considerado um dos percursos viários mais perigosos dos Estados Unidos. Em 1968, o artista Robert Smithson escreveu: “Los Angeles é apenas subúrbio. Um fenómeno sem propósito que parece inabitável (…). Uma cópia gasta de um mau filme.” Estas planícies foram sendo ocupadas pela expansão até ao infinito da área metropolitana, o deserto foi o lugar ideal para multiplicar versões baratas do modelo da habitação unifamiliar. Esta área é chamada Inland Empire (Império Interior) e é o inferno que se opõe ao éden da costa marítima.

A leste desta zona desolada foi construída a versão hiperbólica do oásis paradisíaco. Palm Springs é um super-éden que se estende numa planície rodeada pelas montanhas fotogénicas do Coachella Valley. Uma estância de Inverno que se popularizou no pós-guerra pela sua imagem moderna. O mapa turístico da cidade está povoado com as casas de celebridades do século passado —­­­­ Frank Sinatra, Zsa Zsa Gabor, Elvis Presley — e arquitectos míticos — Richard Neutra, Albert Frey, Craig Elwood. Estas casas são as versões superiores do modelo de paraíso individual da Califórnia — espaços abertos, vistas sobre as montanhas, e a ubíqua piscina — como a Casa Kaufmann, projectada por Neutra em 1946 como residência de Inverno de Edgar Kaufmann, que passava os verões na Pensilvânia na famosa Casa da Cascata desenhada por Frank Lloyd Wright. Quando visitamos Palm Springs, percorremos um espaço surreal de “casas de sonho” como se nos passeássemos por uma revista de arquitectura. 

Este ano a cidade organizou uma bienal de arte, Desert X, que propôs explorar a tradição americana de produção artística na paisagem, espalhando instalações pela cidade e pelo território circundante. A exposição terminou em Abril mas ainda se podia visitar Mirage de Doug Aitken. Encontra-se em Desert Palisades, um loteamento privado ainda sem casas. À entrada deram-nos duas brochuras, uma com a descrição da obra de Aitken, outra com a descrição dos lotes que se podem comprar. Esta última sublinhava que Mirage estava localizada no lote com a melhor vista sobre as montanhas e listava fastidiosamente todas as celebridades que viveram em Palm Springs.

Mirage é uma casa suburbana com todas as faces cobertas por superfícies espelhadas. É uma mina de ouro para os fãs de selfies, quando nos aproximamos e entramos na casa passamos a ver a nossa imagem multiplicada infinitamente. Quando a visitámos, estava cheia de pessoas que se divertiam a fotografar-se. Inadvertidamente, ao partilhar estas imagens online, estávamos todos a contribuir para a divulgação daquele empreendimento imobiliário. 

Lembramo-nos nostalgicamente de California Map Project (1969) em que Baldessari questionou a geografia real e imaginada desse estado, inscrevendo as letras C-A-L-I-F-O-R-N-I-A em diversos pontos da paisagem. Quando lhe perguntei sobre esse projecto, disse-me: “Aprendi que uma obra de arte não tem de ser uma coisa ou uma imagem. Pode ser dispersa no espaço e no tempo. Gostei da ideia de fazer uma letra de cada vez e o trabalho não ficar completo até que todas as letras estivessem feitas.”

De Palm Springs rumámos ao parque nacional Joshua Tree para visitar um oásis verdadeiro — Cottonwood Spring. Na paisagem árida do deserto Sonora, encontra-se um pequeno oásis com árvores, palmeiras e uma nascente que serviu de subsistência ao povo Cauhilla. É um lugar bonito, onde vimos lagartos, aves de rapina e ocotillos em flor — uma planta indígena deste deserto. Alguns sinais apontavam para elementos importantes para a subsistência, como um almofariz escavado na rocha que servia para transformar a leguminosa mesquite, um dos arbustos ali abundantes.

Em meados do século XIX, as nascentes e pontos de água tornaram-se valiosos para a exploração mineira e estes oásis deixaram de ser habitados pelos nativos. Hoje, quando passamos pela sombra das palmeiras, podemos ver uma placa que nos avisa dos perigos que corremos se nos afastarmos dos trilhos indicados, pois o solo está contaminado com metais pesados, como arsénico, chumbo e cobalto.

Estas paisagens naturais que parecem intocadas estão invisivelmente contaminadas. Na próxima parte desta viagem iremos passar pelas paisagens do Arizona, imortalizadas em Technicolor, e pelo Grand Canyon, a imagem do sublime americano. 

 

*Investigadora em pós-doutoramento CES, Universidade de Coimbra. 

Prémio Fernando Távora é uma iniciativa da OASRN, Secção Regional do Norte da Ordem dos Arquitectos em parceria com a Câmara Municipal de Matosinhos e a Casa da Arquitectura.

Excertos de entrevista cortesia de John Baldessari

Esta série tem o apoio da Fundação Luso-Americana

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