Poder ter pressa

Poder ter pressa é um luxo. É pena perder-se tão facilmente.

Lembro-me de um tempo em que ter pressa era uma coisa rara, uma aflição que suscitava a simpatia dos outros. Numa loja — ou mesmo num consultório —, se alguém pedisse para passar à nossa frente "por ter pressa" ninguém dizia que não. Nem sequer desconfiavam.

A pressa era sempre uma surpresa rara. Acontecia por azar. Tanto mais que o motivo da pressa era contado como se fosse uma história dramática — e triste. Tudo tinha sido bem combinado, a vida até estava a correr bem quando, de repente, sem dizer água-vai, "surge um imprevisto" que tem o desplante de se agachar à nossa frente e comer o tempo todo que tínhamos.

Aqui em Almoçageme ainda é assim. Se alguém diz que tem pressa, temos pena e abrimos caminho. Habituamo-nos a essa solidariedade e a esse vagar. Não se pode é abusar, claro. Nem é preciso dizer isso — porque ninguém abusa.

O mal é transportar essa atitude quando vou a Lisboa. Toda a gente parece ter mais pressa — e, simultaneamente, mais tempo — do que eu. Já estão há mais de meia hora na fila. "Ah, tem pressa? Também eu, meu amigo — ponha-se na fila que há-de ser atendido, quando chegar a sua vez."

A pressa torna-se um tabu. Falar nela é como confessar que também se precisa de oxigénio para respirar. Contar com a compreensão alheia fracassa espectacularmente. Caso se insista, no meio de uma genuína emergência, até podem ceder o lugar mas fazem-no com o maior dos ódios e a mais venenosa das desconfianças.

Poder ter pressa é um luxo. É pena perder-se tão facilmente.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários