E a vida continua, entre as minas e as aldeias

O dia dos documentários em Locarno: Wang Bing confrontou-nos com a morte, Ben Russell com o trabalho.

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Meio a brincar, Mark Peranson, um dos programadores de Locarno, dizia entre duas conferências de imprensa que terça-feira era “o dia dos documentários experimentais”. A referência era à coincidência de calendário que exibia no mesmo dia Good Luck, do artista multimédia americano Ben Russell, e Mrs. Fang, do chinês Wang Bing, ambos no Concurso Internacional, mas pode também ser lida como “pré-aviso” acerca dos últimos dias da competição suíça, que se abre mais à descoberta e à experiência ao entrar na recta final (basta pensar que ainda há o filme póstumo de Raul Ruiz por mostrar) – mesmo que descobertas e experiências sejam parte do ADN do festival, sobretudo nas secções paralelas (haverá de se falar do “caso” que é Cocote, do dominicano Nelson Arias, mas ficará para outra prosa).

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Meio a brincar, Mark Peranson, um dos programadores de Locarno, dizia entre duas conferências de imprensa que terça-feira era “o dia dos documentários experimentais”. A referência era à coincidência de calendário que exibia no mesmo dia Good Luck, do artista multimédia americano Ben Russell, e Mrs. Fang, do chinês Wang Bing, ambos no Concurso Internacional, mas pode também ser lida como “pré-aviso” acerca dos últimos dias da competição suíça, que se abre mais à descoberta e à experiência ao entrar na recta final (basta pensar que ainda há o filme póstumo de Raul Ruiz por mostrar) – mesmo que descobertas e experiências sejam parte do ADN do festival, sobretudo nas secções paralelas (haverá de se falar do “caso” que é Cocote, do dominicano Nelson Arias, mas ficará para outra prosa).

No caso de Russell e Wang, “o dia dos documentários experimentais” referia-se também ao vazio que estes dois filmes fazem à sua volta, ao desafiarem o espectador para largar amarras e partir em direcção a paisagens desconhecidas. Mrs. Fang é um confronto directo com a morte que nos recorda que a vida continua, filmado durante os últimos dias de uma doente de Alzheimer numa aldeiazinha não longe de Pequim; Good Luck leva-nos ao quotidiano de mineiros na Sérvia e no Suriname, sem narração nem música que nos sirva de âncora. São filmes que jogam a seu favor com a duração do plano e o efeito de distensão do tempo que isso cria, levando literalmente ao limite a premissa documental de filmar a realidade tal como ela é deixando as imagens falar por si.

Russell, cujo trabalho anterior passou pelo Doclisboa ou pelo Curtas Vila do Conde, pega numa steadycam e desce às profundidades negras e húmidas da mina de cobre de Bor antes de navegar a floresta tropical que rodeia a mina de ouro de Kiiki Neigi, em ambos os casos acompanhando um dia normal de trabalho – mais gregário e amador no hemisfério sul, onde os geradores correm a gasolina e ninguém se cala, mais preciso e técnico no hemisfério norte, onde todos estão concentrado e as máquinas são essenciais. Sérvia e Suriname são duas faces da mesma moeda, unidas pela abordagem de encenação que evita contextualização narrativa e deixa apenas as imagens, longuíssimos takes pensados para fazer o espectador sentir o ruído, o calor, a camaradagem, e sobretudo o esforço e a monotonia destas tarefas pesadas. A aposta na duração cria, sobretudo na primeira parte, uma sensação imersiva de transe quase hipnótico que faz de Good Luck, mais do que um filme, uma experiência física, quase como uma realidade virtual criada puramente pelo equipamento de projecção.

Se Ben Russell envolve o espectador, Wang Bing, por três vezes vencedor do Doclisboa, sempre despojou o seu cinema reduzindo-o ao mínimo essencial: uma câmara. Mrs. Fang foca-a no agregado familiar de Fang Xiuying (1948-2016), uma idosa chinesa diagnosticada com uma forma de Alzheimer, durante os últimos dez dias da sua vida, alternando entre longos grandes planos da sra. Fang deitada na cama, com os olhos como único sinal de vida num corpo que já quase não se move, e planos de conjunto da família que discute com uma naturalidade desconcertante pormenores como o custo das cerimónias fúnebres ou se se deve ou não chamar o neto para estar perto da avó quando ela morrer.

Estreado na documenta14, Mrs. Fang insere-se na linhagem dos retratos austeros em que Wang se especializou, como The Man with No Name, Três Irmãs, Til Madness Do Us Part e Father and Sons. Mas a abordagem puramente observacional do documentarista chinês equilibra-se aqui num delicado jogo de contrastes, entre a truculência de uma família que enfrenta a banalidade quotidiana de continuar a viver depois da morte da matriarca (e que vai à pesca enquanto ela não morre) e a pungência de uma mulher impotente perante a morte. Wang está longe de ser um cineasta sensacionalista – bem pelo contrário – e as imagens da sra. Fang nunca são gratuitas, colocando-nos no lugar de uma família que lida diariamente com um familiar moribundo enquanto torna visível a devastação física que a doença provoca. Mas isso não inviabiliza o desconforto que elas criam, nem o modo inescapável como Mrs. Fang força o espectador a olhar de frente para um dos tabus sociais dos nossos dias.