Em Locarno, o Holocausto como ainda não o tínhamos visto

Depois de Idi Amin Dada e Jacques Vergès, Barbet Schroeder completa a sua trilogia de documentários sobre o mal com o monge birmanês Wirathu. Mas foi o romeno Radu Jude a mostrar o documentário-murro-no-estômago do festival, com The Dead Nation.

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Le Vénérable W., de Barbet Schroeder DR
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The Dead Nation, de Radu Jude DR
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The Dead Nation, de Radu Jude DR
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The Dead Nation, de Radu Jude DR

Locarno é sempre um bom sítio para tomar o pulso do cinema documental, em grande parte porque o festival se abre sem problemas a todo o tipo de experiências, do mais clássico ao mais inovador. Nos 70 anos do festival suíço, já falámos aqui de Denis Côté e do seu “documentário encenado” Ta peau si lisse, terá de se falar mais à frente de Wang Bing, Ben Russell ou Travis Wilkerson. Mas para já fale-se de Barbet Schroeder, que completa a sua “trilogia do mal” com Le Vénérable W. (fora de concurso), e do romeno Radu Jude, que se abalança à forma pela primeira vez com The Dead Nation (Signs of Life). O melhor não é aquele que se esperaria.

Schroeder, o veterano francês que foi um dos motores da nouvelle vague como produtor de Rohmer, Jean Rouch ou Chabrol e tem tido uma carreira multifacetada entre a Europa e os EUA, assinou com o seu olhar sobre o ditador ugandês O General Idi Amin Dada (1974) um dos mais célebres títulos do documentário daquela década. Por entre filmes como Jovem Procura Companheira ou Reveses da Fortuna, Schroeder regressou ao formato em 2007 com O Advogado do Terror, sobre Jacques Vergès, ex-resistente que defendeu em tribunal o criminoso de guerra nazi Klaus Barbie.

Le Vénérable W. “completa” essa trilogia de filmes sobre figuras controversas, debruçando-se sobre Ashin Wirathu, o monge budista birmanês que é “líder espiritual” do movimento antimuçulmano da Birmânia – denunciado internacional e internamente pelo seu incitamento ao ódio. É um tema literalmente escaldante – ao longo dos últimos sete anos, Wirathu tem empolado, na melhor tradição demagógica, incidentes isolados para diabolizar a religião muçulmana, fazendo reviver uma campanha de desconfiança e xenofobia que já se manifestara num programa governamental de 1978 para expulsar os muçulmanos da Birmânia. “Uma plataforma de limpeza étnica”, como diz às tantas um dos entrevistados de Schroeder, que já foi denunciada pela Nações Unidas, e que a lendária activista e conselheira de Estado Aung San Suu Kyi não tem feito o suficiente para travar.

Le Vénérable W. investiga este mestre manipulador que não hesita em explorar as redes sociais para difundir meias-verdades ou mentiras que defendam a sua causa e incendeiem contra “o outro”, anulando nesse processo a dimensão universalista do budismo (“No momento em que começa a violência, o budismo é destruído”). Mas Wirathu não é a figura complexa que Vergès era, nem tem o carisma de Idi Amin Dada, e Schroeder não consegue realmente penetrar na carapaça da sua imagem cuidadosamente controlada. O filme é por isso menos um olhar sobre uma figura polémica, mais um lançar de alerta para a tragédia da minoria rohingya, eficaz, inteligente, importante, mas mais convencionalmente activista do que se esperaria face aos pergaminhos de Schroeder.

As fotos do fogo

É por aí que Radu Jude ganha aos pontos com The Dead Nation, transformando um projecto de found footage numa viagem perturbante ao coração das trevas, com a progressiva marginalização dos judeus romenos durante o período da Segunda Guerra Mundial a iluminar, como um sol negro, os nossos próprios dias de crise de valores. Esta primeira experiência no documentário do realizador de Aferim! surgiu do trabalho de pesquisa para Scarred Hearts, a notável ficção com que ganhou o Prémio do Júri no ano passado em Locarno. Esse filme, baseado na obra do escritor judeu romeno Max Blucher, decorria durante uma longa estadia num sanatório em 1936, com a guerra e a xenofobia a desenharem-se no horizonte.

Durante a investigação, Jude encontrou as imagens de Costica Acsinte, fotógrafo de província, e o diário de Emil Dorian, médico judeu de Bucareste que viveu na pele as provações da população judaica durante a guerra. Juntou excertos do diário às imagens digitalizadas e a gravações de música e discursos da época para criar este registo metódico de descida aos infernos, tornado poderoso pelo modo notável como Jude dissocia as imagens do texto. As fotografias de Acsinte são essencialmente variações sobre a foto de família, de tropa, de casamentos, funerais, festas de aldeia, que se mantêm praticamente inalteradas no período abarcado pelo filme (1937-1945) e estão permanentemente em contradição perante um texto que narra a destruição progressiva e inexorável da dignidade de todo um segmento da população nacional.

É impossível não sermos tocados pela ironia trágica de ouvir os textos em que Dorian fala da limitação de movimentos imposta pelas autoridades e pelo espírito de turba que se apodera de algumas comunidades num momento em que figuras políticas de todo o mundo procuram precisamente explorar esse tipo de sentimentos xenófobos. No modo como recorre à lógica do filme-ensaio de found footage (com qualquer coisa de Bill Morrison), The Dead Nation consegue, com a sua modéstia de meios e austeridade de processos, oferecer uma nova possibilidade de olhar para o Holocausto no cinema sem cair nas armadilhas do já visto ou do gratuito, construindo um dos mais poderosos e inteligentes filmes recentes sobre o tema – e alertando para a facilidade com que se reacendem estas chamas.

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