Entendimentos camerísticos de ontem e de hoje

Dois excelentes concertos na Póvoa de Varzim pelo quarteto Pavel Haas, pelo Ensemble Clepsidra e por um quarteto ad-hoc, nos quais foi também evidente a qualidade da música de dois jovens compositores portugueses.

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O Ensemble Clepsidra DR
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O Quarteto Pavel Haas DR

No concerto de quinta-feira passada na igreja românica de São Pedro de Rates, o quarteto Pavel Haas apresentou um conjunto de peças que coloca em perspectiva a evolução estilística do repertório para quarteto de cordas, partindo da sua matriz germânica e passando pelo romantismo e pelo modernismo checos.

A qualidade individual e a forte cumplicidade do grupo são dois importantes pilares que garantem a este quarteto interpretações de excelência, alicerçadas num profundo sentido camerístico. Na interpretação do quarteto de cordas nº 12 em Mi bemol maior Op. 127 de Ludwig van Beethoven, o quarteto conjugou com mestria o princípio clássico de “conversa entre iguais”, com a originalidade expressiva e o virtuosismo abundantemente solicitados pelo compositor na sua última fase criativa. À eloquente interpretação do primeiro andamento, seguiu-se um sublime Adagio, ma non tropo e molto cantabile no qual se destacou a extraordinária capacidade expressiva do quarteto. Após um terceiro andamento menos conseguido, o grupo concluiu a obra tirando pleno partido dos contrastes temáticos do Finale.

No Quarteto nº 3 de Bohuslav Martinu, o grupo realçou as características modernistas desta composição, nomeadamente ao nível rítmico e contrapontístico, com uma interpretação vigorosa, precisa e estilisticamente convincente. O Quarteto nº 1 Da minha vida de Bedrich Smetana foi igualmente bom, com extraordinários momentos climáticos no primeiro e terceiro andamentos e com uma interpretação irrepreensível do Allegro moderato alla polka.

Apesar de não ter sido perfeito, o concerto do quarteto Pavel Haas não deixou de ser surpreendente e inspirador, alimentando o desejo de que este e outros quartetos checos de referência continuem a integrar a programação dos grandes festivais e salas de concerto em Portugal!

E o espírito camerístico permaneceu em alta dois dias depois no concerto a cargo do Ensemble Clepsidra e do quarteto instrumental formado por Afonso Fesch, António Saiote, Filipe Quaresma e Miguel Borges Coelho.

O programa da primeira parte incluiu as duas peças finalistas do décimo Concurso Internacional de Composição da Póvoa de Varzim, da autoria dos jovens compositores Gerson Batista e Miguel Bastos, e ainda uma composição de José Luís Borges Coelho, presidente do júri da presente edição do concurso. Em ReCanto, ficou patente a larga experiência coral do maestro e compositor Borges Coelho, não só no idiomatismo das linhas vocais, mas também na inteligibilidade do texto literário e no equilíbrio entre vozes e instrumentos.

As duas obras a concurso também demonstraram uma utilização equilibrada e variada dos recursos vocais e instrumentais, assim como uma organização clara do discurso musical. As peças distinguiram-se sobretudo ao nível estético e no desenvolvimento do material musical. Voces Hominum, de Gerson Batista (n. 1988), é uma composição estilisticamente ecléctica e marcada pelo recurso ao humor e à ironia, o que lhe confere uma capacidade comunicativa imediata. Foram certamente estas as características que fizeram jus à atribuição do prémio do público. Por outro lado, a diversidade de materiais musicais e literários resultou num discurso musical de cariz rapsódico, no qual a unidade e a coerência do discurso musical ficaram por vezes fragilizados. Já a composição de Miguel Bastos (n. 1995), À Toa, foi construída a partir do poema homónimo retirado da obra , de António Nobre. Apesar de estar organizado em 14 breves quadros, o discurso musical é predominantemente contínuo e explora inter-relações temáticas que lhe conferem equilíbrio entre unidade e contraste. A obra apresenta ainda um amplo conjunto de técnicas vocais e instrumentais, bem articuladas numa orquestração sólida e com soluções variadas. Foram certamente estas as características que levaram à atribuição do primeiro prémio.

O coro e o quarteto realizaram boas interpretações, nas quais se destacaram a qualidade tímbrica das vozes e o equilíbrio dinâmico do tutti. É digna de referência a versatilidade interpretativa dos cantores do Ensemble Clepsidra em duas obras que articulam intervenções solistas e corais, recorrendo também a diferentes modos de emissão vocal.

Na segunda parte foi interpretado o Quarteto para o fim do tempo, de Olivier Messiaen, obra cronologicamente próxima do 3º quarteto de Martinu, embora composicionalmente muito diferente. A interpretação, rigorosa e coerente, caracterizou-se pela transparência das texturas, pelo equilíbrio das diferentes formações instrumentais em que o quarteto se desdobra e ainda pela exploração subtil das intensidades sonoras. Surpreendente (ou não!) é o facto de este ser um quarteto ad-hoc, formado por quatro excelentes músicos portugueses pertencentes a gerações distintas, que demonstraram um entendimento exemplar na interpretação desta emblemática obra, proporcionando momentos dignos de registo fonográfico.

A título exemplificativo, refiro a sonoridade delicada e cristalina da secção central de Vocalise, pour l'Ange qui annonce la fin du Temps, que proporcionou um sublime contraste com as duas breves partes que a enquadram. Assim como o fraseado expressivo e o criterioso vibrato de Filipe Quaresma e de Afonso Fesch que, em Louange à l’Éternité de Jésus e Louange à l’Immortalité de Jésus, criaram um profundo sentimento de recolhimento e de contemplação espiritual. Em ambas as peças o pianista Miguel Borges Coelho realizou um acompanhamento rigoroso e subtil, contribuindo decisivamente para a excelente interpretação dos dois solistas.

É ainda incontornável referir a capacidade de resistência dos quatro instrumentistas que mantiveram o rigor e a solidez interpretativa ao longo de quase duas horas de concerto. Neste mesmo sentido destaca-se a versatilidade de António Saiote, que desempenhou com igual mestria e assertividade as funções de clarinetista e, na primeira parte, de maestro.

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